terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O REBANHO DE PANURGE

François Rabelais (1494/1553)  e o seu Quarto Livro (1548) continuam actuais: "Panurge, sem mais dizer, atira ao mar o carneiro gritando e balindo. Todos os outros carneiros, gritando e balindo no mesmo tom, começaram a atirar-se ao mar logo a seguir, todos em fila. Cada um procurava atirar-se antes dos outros seus companheiros.  Era impossível impedi-los, pois vós sabeis ser natural no carneiro seguir sempre o da frente, seja para onde for que ele vá."
"Ainda há dois meses -nomeadamente do outro lado da Mancha- todos aguardavam a bancarrota sucessiva da Grécia, da Irlanda, de Portugal e da Espanha, culminando num naufrágio do euro.. Os Estados Unidos estavam à beira da cessação de pagamentos, e Obama pagou-o bem caro eleitoralmente. A China travava quanto podia. O Brasil estava apopléctico, devido a uma vaga de capitais especulativos. Por conseguinte, para sempre seguir o da frente, os investidores de Panurge vendiam as acções à pressa e em quantidade, comprando ouro às carradas, mas igualmente vis matérias-primas.
Desde então, estamos em 2011. O euro fortificou-se. O índice da Bolsa de Paris ultrapassou os 4 mil pontos. Wall Street descobriu que a suas empresas cotadas conseguiriam este ano lucros indecentes. Surpreendendo tudo e todos, os países arruinados da velha Europa colocaram sem dificuldade os seus empréstimos junto dos investidores. A China reboca a economia do planeta e os Estados Unidos retomam o crescimento. Com a canção "a crise acabou", os rebanhos retomaram o usual andamento, em fila mas em sentido inverso, passando a ver de forma clara a economia mundial cor-de-rosa, apesar das montanhas de dívidas que a faziam tremer antes.
Os comentadores do costume recomeçam a anunciar-nos o "superciclo", o tal velocípede que nunca pára, mesmo quando se deixa de pedalar, o que garante  a camisola amarela a todos os que o usarem.
Já no-lo tinham gabado no final dos anos 90, quando as novas tecnologias nos iam facultar a entrada numa nova economia, doravante sem crises nem perdas. O fim da História, em suma, mas na versão capitalista. Nem o estoiro da bolha Internet desencorajou outras almas de voltar a montar para nos vender desta vez os paraísos infinitos da finança. Com uma crise mundial em 2008, como porta-chaves.
E toca a andar novamente, "gritando e balindo", mas nada idiotas. Segundo o nosso confrade The Wall Street Journal, 25 grandes bancos e sociedades de corretagem de Nova Iorque pagaram em 2010 aos seus empregados 135 mil milhões de dólares (99,55 mil milhões de euros) de ordenados e remunerações variáveis, ou seja mais 5,6% em relação ao ano anterior, enquanto que o respectivo volume de negócios de 415 mil milhões de dólares, progrediu apenas 0,9%. Garantiram-nos que tal diferença entre remunerações e volume de negócios pode ser explicada por novas contratações e pelo pagamento de bónus diferidos de 2009. Com que então, houve chorudos bónus mesmo em 2009, ano pouco brilhante! Business as usual.
Demonstrando a recuperação do sector, os banqueiros vieram queixar-se ao Fórum Mundial de Davos que começavam a estar fartos de tanto descrédito. E até preveniram  que ao pretenderem regulamentar em excesso os ratios de capitais próprios, as remunerações e etc, o G20 ia impedi-los de cumprir a sua função, que é, como todos sabemos, de financiar a economia, para mais numa altura em que 2 mil milhões de asiáticos estão a transitar para uma classe média gigantesca e para um mercado fabuloso.
No entanto, nem todo o rebanho se atira "ao mar" Há algumas ovelhas ranhosas que não acompanham o optimismo geral. Mesmo sem falar de Nouriel Roubini, o oráculo nova-iorquino cujo negócio é a catástrofe económica, temos Olivier de Schutter, relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, que anuncia uma crise alimentar nos países pobres, "comparável à de 2008", devido à escalada dos preços dos produtos agrícolas.
Pede mais regulamentação, porque "a elasticidade da oferta e da procura no sector agrícola é muito fraca. A agricultura tão pouco pode responder facilmente aos sinais dos mercados", declarou ele em 13 de janeiro, no site EurActiv.fr. Aconselha por isso reservas de protecção e acções contra a especulação, impondo mais transparência nas trocas de produtos financeiros derivados e limitando "o total de posições que os investidores podem tomar nos mercados a termo", que estão transformados numa "economia de casino".
A outra ovelha ranhosa é o director geral do FMI. Já há retoma, reconheceu Dominique Strauss-Kahn a 1 de Fevereiro em Singapura, mas "não se trata da retoma que pretendíamos; é uma retoma com tensões e constrangimentos, que podem constituir o fermento para a próxima crise".
Na sua opinião, os países mais desenvolvidos arrancam de forma demasiado lenta em relação aos países emergentes, quase em sobre-aquecimento. Na verdade, acrescentou, nenhum dos desequilíbrios anteriores a 2008 foi resolvido: a China e a Alemanha continuam a acumular enormes excedentes comerciais; as taxas de câmbio não estão adaptadas; os mercados financeiros não estão saneados. Vamos a isso.
Pior ainda, surgiram novos perigos, como por exemplo "um desemprego elevado, bem como o alargamento do fosso das desigualdades de rendimentos e de riqueza, o que gera um desespero temível para a estabilidade política. Somos até tentados a perguntar "Não é verdade, Ben Ali, Mubarak, Obama e Sarkozy (e Sócrates, para nós portugueses)?
Retomando o tema que tinha lançado em Oslo, em 2010, em conjunto com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o patrão do FMI convidou os governos a pouparem à juventude o drama de pertencer a uma geração perdida, criando emprego para os 400 milhões que vão chegar ao mercado mundial do trabalho nos próximos dez anos. Fez suas também as propostas da OIT para criar protecção social adequada, susceptível de evitar "aos mais vulneráveis as despesas da crise".
 Aceitam-se apostas para saber quem conseguirá manter-se a flutuar. Os optimistas crónicos, adeptos do "deixa afogar", sem dúvida alguma maioritários entre os carneiros de Panurge? Ou os raros profetas da desgraça, partidários de medidas de salvamento e de nadadores-salvadores, para o caso de...?

Alain Faujas, Le Monde, 06/02/11, página 17
As datas entre (  ), na primeira linha, bem como a referência a Sócrates, são da responsabilidade de Tomar a dianteira.

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