O nabantino José Quitério, decano dos gastrónomos portugueses e colaborador habitual do Expresso, veio mais uma vez matar saudades, recordando sabores da adolescência, graças às iguarias agora das Algarvias. Acontece porém que, antes de oficiar por aquelas bandas, a Céu, filha do Zé Careca, laborou durante anos alí ao cimo da Corredoura, à ilharga da Igreja de S. João, na casa paterna da Mimi e do Zé Quitério. Onde isso já vai. Ainda nem havia Ponte Nova, quanto mais a do Flecheiro...
"A Céu aberto"
"O Restaurante Chico Elias, a dois quilómetros de Tomar (povoação de Algarvias, na estrada velha para Torres Novas) há muito que se tornou conhecido, reconhecido, louvado e consagrado. Tudo começou com o casamento, em 1963, de Maria do Céu Pereira com Francisco Elias Simões, cujo pai, entre outras coisas, tinha uma tasca em que a companhia para os copásios não passava de petiscos sumaríssimos. Dotada de natural aptidão culinária entretanto desenvolvida, aprofundada e aperfeiçoada, Maria do Céu foi dando a volta à coisa, calmamente, introduzindo novas petisqueiras que trouxeram novos fregueses que possibilitaram novo apetrechamento e nova acomodação espacial, o que por sua vez lhe estimulou a criatividade e o salto qualitativo: em pouco mais de uma dúzia de anos, o modesto estaminé transformou-se numa casa de pasto famosa, a que o estatuto de restaurante não aqueceu nem arrefeceu.
Declaração de interesses (como se diz agora): sou amigo da Céu desde os meus 10 anos de idade (e 13 dela), há tantas décadas, céus!, que não ouso contar. Contado fica que nesta coluna (nascida em 1976) falei do restaurante em 1979, 1981, e 1989. Passados 24 anos, apetece-me voltar a escrever. Primeiro o resumo do agora provado em duas jornadas. "Petingas no forno" (€6/€8) entradeiras, que se entretiveram nos calores com rodelas de cebola, alho, colorau, azeite, vinagre e um tiquinho picante. O "Bacalhau com broa e presunto" (€14), em que ele começou por ficar dum dia para o outro em leite e sumo de limão, cozinhando depois no forno lentamente em camaradagem com presunto, broa migada e molho de natas e açafrão-da-índia, uma ridente salada de alface à parte. O "Pato com migas" (€14), considerando-se estas na couve cozida e a broa esfarelada que às camadas vão entremeando o marreco, previamente estufado e desfiado, na assadeira, o seu molho a animar a malha aspergida d pinhões e nozes. O "Coelho na abóbora" (€15) começa por ser um espectáculo visual: a abóbora, que pode ser menina ou porqueira, qual bojudo vaso lacado (a negritude aqui não é senghoriana, é fornífera), apresentada sobre peanha de barro encaixante. Tira-se a tampa, um anel da própria segmentado, e é o espectáculo olorífero. O sápido vem a seguir, dado que o coelho, repousado anteriormente em vinha-d'alhos, assou dentro da cucurbitácea despevidada (antes levou uma entaladela em tacho) que também lhe transmite algo de si conluiado com o molho derivado da marinada mais cogumelos, alecrim e rosmaninho, durante as duas horas de parto. O "Cabrito assado no forno de lenha" (€17), afinado pelo diapasão canónico, é dos mais brilhantes desempenhos celestes, pela qualidade e idade do chibinho, pela exatidão do unguento temperador, pelo tempo certo da assadura, pelo acompanhamento. Por falar nisto, não se deixe sem registo um complemento muito presente aqui: os grelos de nabo cozidos. Este magnífico legume português, levado ao mais alto nível pela selecção apurada e pelo processo de coccção: bem lavados em água fria, água a ferver despejada por cima deles ainda no alguidar, introdução na panela de abundante água fervente em cachão, parcos gramas de bicarbonato do sódio para relevar o verde. Nada de salteados, que trariam o inevitável gosto aliáceo, só cozidos como o descrito, vivificados por um fio de bom azeite, a revelarem o seu toque de amargura tão específico.
O arsenal logístico fornece muito mais munições de boca. Na área das entradas, a "morcela de arroz" e a fundacional "feijoada de caracóis". Dos pratos de peixe, os antigos e apreciados "enguias de fricassé" e "bacalhau com carne de porco", e o mais recente "bacalhau à S. João Baptista" (primo, o bacalhau, não o santo, do Zé do Pipo). Na zona carnal, a veterana "cachola", as especiosas "couves à D. Prior" (com história e ingredientes que lamento não ter espaço para contar), os mais modernos (e compósitos, se não barrocos) "danado de bom" e "ragu do embaixador".
Alto e pára o baile! Para usufruir de quase tudo o que está para trás, é absolutamente necessário entrar em contacto telefónico (249 311 067), encomendar e combinar, de antevéspera.
Há vinhos tintos suficientes (e os tomarenses valem a pena). Melhores "fatias de Tomar" e "leite-creme", não existem.
Céu: Enquanto se mantiverem essas criatividade, mão e dedicação, temperadas pelo riso a céu aberto, não há inferno "troikiano" (e dos capatazes locais) que aniquile a esperança."
José Quitério, À mesa, Expresso-Revista, 26/01/2013, página 70
1 comentário:
Que saudades da cozinha maravilhosa da Dona Céu!
Maria
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