Cada vez mais apoquentado com a situação de evidente bloqueio político que se vive em Tomar, bem como face ao manifesto desfasamento entre os comentadores usuais e a vera situação do país, resolvi ir em busca de algum oxigénio intelectual. O recente livro de Manuel Carvalho da Silva pareceu-me uma boa fonte, mesmo sabendo que se trata de um conhecido militante do PCP. Cuidei que talvez, finalmente, avançasse ideias susceptíveis de ultrapassar a bem conhecida língua de pau e os usuais chavões para os fiéis da casa, dado tratar-se de uma boa cabeça, que fez um brilhante e raro percurso mundo do trabalho > mundo sindical > mundo académico.
Feita a leitura atenta, fiquei com água na boca; algo desiludido em relação à expectativa inicial. Desde logo por não se tratar de escritos originais, em primeira publicação, mas antes de peças já apresentadas em público e agora requentadas. Mas fosse esse o seu principal óbice. Infelizmente não é. De tal forma que, lamento ter de o dizer- as apregoadas ideias para Portugal não me parecem minimamente susceptíveis de congregar vontades ou de gerar postulados novos. E sem isso...
Não que a obra careça de linhas de força capazes de facultar proveitosa discussão, caso os pensadores e militantes da extrema esquerda venham a aceitar enfim que não têm sempre razão contra o devir da história. Fora do local e do momento para aprofundar quanto baste, limito-me a uma curta mas muito importante citação: "Lembremo-nos que era na Europa que se situava mais latente o confronto dos dois sistemas e isso marcou o seu processo de desenvolvimento: hoje impera a ortodoxia liberal e não há alternativa credibilizada. A social-democracia ficou a festejar a queda do Muro de Berlim e rendeu-se às inevitabilidades liberais dominantes." (Página 149)
Esqueçamos o óbvio excesso de etnocentrismo do ínício do postulado, uma vez que japoneses, coreanos ou americanos, por exemplo, poderão dizer outro tanto sobre a relação de forças nas respectivas áreas geográficas de influência, em relação à China, à Coreia do Norte e a Cuba/Venezuela, respectivamente. Atentemos agora sobretudo na parte destacada a amarelo por Tomar a dianteira. Parece-me que a social-democracia não ficou a festejar coisa alguma, mas apenas à procura de novos conceitos políticos que por enquanto ainda não conseguiu encontrar. Et pour cause. Como poderiam grandes grupos de intelectuais bem calejados pelas lutas políticas entreter-se a festejar uma coisa que não aconteceu como Carvalho da Silva a descreve?
Na verdade -seja ela mais ou menos inconveniente, consoante o quadrante político-intelectual do leitor- o Muro de Berlim, não caiu, não se desmoronou, não ruiu devido a causas naturais. Tão pouco foi bombardeado, ou sequer atacado fisicamente pelos americanos, pelo NATO ou pelos capitalistas. Foi, isso sim, derrubado por cidadãos dissidentes do país que o mandara erguer, os quais contaram com a passividade e por vezes até a colaboração das autoridades que o ergueram, tudo isto no quadro de um determinado processo histórico, que Carvalho da Silva, como bom marxista que é, não pode ignorar.
Resta por conseguinte aceitar a realidade sem maquilhagem e ousar fazer as perguntas pertinentes e indispensáveis: Porque aconteceu? Porquê em 1989? O que levou os outros membros do Pacto de Varsóvia a implodir, sem intervenção armada externa? O que evitou a repetição de Budapeste 56 e de Praga 68?
Subsiste uma outra questão latente -o problema da ortodoxia liberal e do governo pretensamente neo-liberal que temos. Para não alongar, direi que estamos frente a algo parecido com o já denunciado antes no caso da alegada "queda" do muro berlinense: Carvalho da Silva pinta a realidade a seu modo. Para o demonstrar, basta recorrer a uma comparação. Quem conhece o aparelho burocrático português, americano e russo, por exemplo, sabe bem que o nosso se assemelha muito mais ao de Moscovo que ao de Washington. De modo que, apodar o governo PSD/CDS de neo-liberal é da mesma ordem que classificar os leões como herbívoros.
Não é a caminhar para Faro que vamos chegar a Vila Real em tempo útil. Partindo de pressupostos falsos, só por mero acaso se pode chegar a conclusões aceitáveis e operativas.
Desiludido, continuo a manter a esperança num mundo melhor.
1 comentário:
DE: Cantoneiro da Borda da Estrada
Já que estamos no domínio da filosofia política..., dou-me ao trabalho de deixar aqui algumas citações de um artigo de Raúl Proença, um pensador, um apóstolo da democracia e da liberdade em Portugal, um intelectual-político, um filósofo português, um genuíno Republicano, que, infelizmente, tão tardiamente descobri, e pelo qual me estou a "apaixonar". Muitas vezes me falaram dele ao longo da vida, e não sei porque tanto tardei em contactar diretamente com ele... São citações de um artigo na "Seara Nova, nr. 271, de 12 de Agosto de 1931, que retirei do livro "Raúl Proença-Estudo e Antologia" de António Reis.
(Parece que foi escrito antontem)
"Os homens estão mais vezes de acordo do que se julga. No nosso país existe uma grande intolerância geral, que é a revelação de que o espírito despótico persiste ainda e que somos,muitas vezes sem o sabermos correligionários dos combatentes adversos. Nas palavras afiguram-se-nos abismos inultrapassáveis, precipícios fundos de contradição; mas na atitude dos espíritos, na disposição das almas para a vida, é a mesma opção pelo Sylabos, a mesma escolha do autoritarismo atávico".
"(...) A este desgraçado conformismo intelectual corresponde uma desunião moral nefastíssima. Atacamo-nos uns aos outros com raiva; escarnecemos uns dos outros com delírio. Nos partidos estabelecem-se facções, clientelas, partidos de partidos, restos de restos... Por divergência profunda de ideias?
Não; por uma questão de invejas, de susceptibilidades, de ódio mesquinho, passamos o tempo a atirarmos uns aos outros pedras da mesma pedreira".
"Não temos a coragem das nossas opiniões. Há gente que em Portugal se bate por cobardia. Eu julgo que é a esses que a multidão chama valentes"
"-Julgar que toda a gente pode discernir, por si, sem ser ilucidada pelos homens competentes, as relações gerais das coisas, os grandes problemas da vida política , é um dos maiores erros que se podem cometer em democracia. Eu sustento precisamente o contrário, sustento que a capacidade de elaborar ideias gerais, de ver espontaneamente relações gerais, não só é privilégio de muitos poucos, como muito mais rara que a capacidade dos chamados especialistas"
"(...) Muitos há que identificam coisas gerais, relações gerais das coisas, com ideias vagas. É uma grande confusão de ideias. Não há coisas, relações que exijam maior nitidez, maior precisão de pensamento do que essas coisas gerais, essas ideias gerais, essas relações gerais das coisas - que são precisamente as mais importantes em qualquer momento da história humana. Pode-se fundar o programa mais concreto, mais minucioso sobre um equívoco inicial. (Por isso recear o regime dos técnicos na política! São em geral os piores cegos políticos a que poderão confiar os destinos duma nação! Imaginem o que será um desgraçado país conduzido por um cego!, e por um cego que imagina ver, o que é ainda pior!). O que nunca se dedicou senão a essa especialidade especialíssima que eu chamo a especialidade da generalidade tem muito mais probabilidades de ver o erro original donde parte o técnico. Cabeças de políticos, cabeças de técnicos: eis duas categorias diferentes de inteligência, ambas eminentemente úteis - no seu lugar... E não consinta nunca o político subordinar-se ao técnico. É a técnica que deve ser a ancilla politicae - a servidora dos fins políticos do homem".
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