A autora no Cairo, em 26 de Janeiro passado. Foto Magali Courouge/Le Monde
"Atribulações de uma chinesa no Cairo" - 2
Yitong Chen, uma jovem chinesa de 24 anos a estudar no Cairo (Egipto), conta a sua vida. (Ver texto anterior).
"Ás vezes não uso calças mas uma saia comprida com um véu. Chateiam-me menos na rua. As pessoas continuam a berrar "sini, sini!" mas já estou habituada. Um dia destes, um comerciante da zona seguiu-me. Agarrou-me, mas eu gritei e esperneei. Os vizinhos acudiram-me e perguntaram-me -"O que é que tu queres que a gente lhe faça? Queres bater-lhe?" Dei-lhe um estalo e gritei-lhe: -"Também gostavas que fizessem o mesmo à tua irmã num país estrangeiro?" Continuo bastante nervosa. -"Queres dar-lhe outra bofetada?" perguntam os vizinhos. Foi o que fiz.
Já dou explicações de francês e de chinês, e também tomo conta de crianças. Assim o meu pai já não me manda dinheiro. Mas o que eu mais gosto aqui é das pessoas. Por vezes o padeiro dá-me um croissant: -"Toma; é um presente." Uma vez, num taxi, não tinha troco e o motorista disse-me logo: -"Deixa lá, pagas para a próxima". Mal uma pessoa se perde ou parece desorientada, vem logo alguém oferecer ajuda. De graça! Durante o mês do ramadão as pessoas distribuem a comida, que têm em cima de grandes mesas, na rua, a quem passa e aos pobres. São atitudes tocantes que ninguém imagina na China.
Em Julho de 2010, a minha prima veio ter comigo ao Cairo. Estou contentíssima. Fui eu que a convenci: "Vais ver, é muito melhor que na China." Semanas mais tarde, estava eu na faculdade quando ela me ligou. Soluçava tanto que mal a percebi. Um homem seguiu-a, conseguiu fugir dele até ao apartamento e barricar-se lá dentro, mas ele arrombou a porta e começou a tentar violá-la. O dono da casa acorreu e o assaltante acabou por fugir com todo o dinheiro que nós tínhamos. Ligo ao tal rapaz, que é o único homem egípcio que conheço. Veio logo. Fomos à polícia. Na comunidade chinesa corre a notícia de que outras raparigas tiveram os mesmos problemas. A embaixada envia-nos regularmente avisos recomendando cautela. A minha prima está muito envergonhada e eu sinto-me um pouco culpada. Resolvemos não falar no assunto a ninguém. Nem à família. Alguns dias mais tarde uma outra chinesa foi agredida. Agora no apartamento dormimos duas em cada quarto.
Uma manhã deixamos de ter rede de telemóvel e Net. Ficamos em sobressalto quando ouvimos tiros e helicópteros. Pela janela vemos blindados e ouve-se gritar "Começou a revolução!" Estamos a 25 de Janeiro de 2011. Fechámo-nos no apartamento, colocámos os móveis a trancar a porta e puzemos a jeito tudo o que pode servir como arma de defesa: facas. martelos, sprays anti-roubo. Isoladas dos mundo, estabelecemos regras para aguentar quanto mais tempo melhor: 1 - É obrigatório deslocar-se sem barulho, de forma a dar a ideia que o apartamento está vazio; 2 - É proibido usar os gás; 3 - Para poupar os mantimentos, só comemos ao pequeno almoço e ao jantar, todos ao mesmo tempo e a parte de cada uma é distribuída pela mais velha.
Os homens do prédio arranjaram armas e organizam turnos de sentinela para que ninguém entre. A embaixada da China enviou aviões para nos repatriar. Decidi não ir. Há três anos que estudo aqui, não posso abandonar agora tudo. Tenho de conseguir o diploma. As outras são da mesma opinião.
Ninguém regressa à China.
Uma semana depois voltamos a ter Internet. O telemóvel volta a tocar. Saímos em grupo, escoltadas por um chinês. No supermercado as prateleiras estão vazias. Recomeçam as aulas e exigem a demissão do reitor. A bem dizer, exigem a demissão de todos os dirigentes, desde que Mubarak abandonou o poder. A vida muda cada vez mais rapidamente. Nas aulas agora só se fala de política. É novidade, mesmo para os professores. Dizem-nos para fazermos uma relação dos elementos que conduziram à revolução e aparece sempre o mesmo factor em primeiro lugar: os jovens não têm empregos. Os egípcios contam-nos o que acontece nas ruas: "Vamos ter finalmente um novo Egipto." Mas vê-se bem que estão inquietos e percebe-se que o povo está desorientado.
Há manifestações todos as sextas-feiras, dia feriado para os muçulmanos, mas eu nunca lá vou. É perigoso. É o tipo de evento em que aproveitam logo para te apalpar. Desde o início da revolução, a população tranca-se em casa, como medo dos ladrões.
Agora, quando saio, algo começa logo a funcionar na minha cabeça. Ponho os fones do meu iPod com canções francesas, chinesas, inglesas e árabes, calmas mas muito altas. Não quero ouvir "sini,sini!". Não quero ver o olhar das pessoas. Admiro o céu egípcio, sempre tão belo.
Apesar de tudo, gosto da vida aqui. O Egipto será para sempre a minha segunda pátria. Acabo de obter o meu diploma: poucos estrangeiros o conseguiram e eu até abtive a menção "Bom". Papá está muito orgulhoso. Até já me disse que me vai dar um presente."
Yitong Chen, Le Monde, 11/02/2013, página 16
Esclarecimento
Este texto foi publicado na habitual secção "Décryptages" - "Témoignage" do Le Monde, com a indicação "M ACADÉMIE", o que indica que Yitong Chen concorreu e foi seleccionada para frequentar a escola de jornalismo patrocinada pelo Le Monde. Integra assim um grupo de cinquenta estagiários que têm direito a uma formação paga de um ano, em Paris. Nada mau.
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