"Atribulações de uma chinesa no Cairo"- 1
"Chamo-me Yitong Shen e tenho 24 anos. Sou chinesa e moro no Cairo (Egipto). Quando saí da China menti aos meus pais pela primeira vez. O meu sonho era aprender francês. Há um liceu especial, bastante caro, na cidade de Changchun, no nordeste da China, junto à fronteira russa, onde ensinam línguas estrangeiras. A minha família vendeu a nossa casa e mudámo-nos, para eu poder inscrever-me nesse liceu. Foi um esforço muito grande. O meu pai é empregado de escritório e a minha mãe trabalha numa farmácia.
Mais tarde, a embaixada de França na China recusou-me o visto de estudante quando pretendi continuar os estudos em Paris. No Egipto há uma universidade francesa reputada, cujo processo de inscrição demora dois dias. Era quase tudo o que eu sabia então sobre este país onde agora habito. Quando mostrei o passaporte ao meu pai, ele não percebeu. Dado que só lê o chinês, julgou que era um visto para França. Na China é assim. Queremos vencer na vida. Atiramo-nos facilmente para a emigração.
Tomei o avião para o Cairo em 29 de Fevereiro de 2008, três anos antes da revolução. No aeroporto tinha um amigo à espera. Tinhamo-nos relacionado na Net. Ele aprende chinês, tal como muitos outros egípcios, desde há cinco ou seis anos. Tratou de alugar-me um apartamento na Praça Guizé, um bairro popular. Não quer que eu saia à rua sem ele e, como não conheço mais ninguém, obedeço-lhe. Quando estou acompanhada por ele, vai tudo bem. Se estiver sozinha os que se cruzam comigo na rua começam a gritar "Sini, sini!", que quer dizer chinesa. Os homens olham para mim com um ar estranho, como se estivesse nua. Fico logo nervosa, cheia de medo.
Fico à varanda, a olhar para o Cairo que me parece um enorme contentor de lixo. Oiço o barulho da cidade, todo o dia e toda a noite. As apitadelas, os autocarros sem portas, onde as pessoas se agarram conforme podem, os apelos à oração que ao princípio confundi com um alarme de incêndio.
O meu conhecido vem quase todos os dias. Ajuda-me, traz-me géneros alimentícios que não consigo cozinhar. Damos passeios pela avenida marginal. Sinto-me na prisão mas, se perco este amigo, de certeza que não vou conseguir sobreviver aqui. Aproxima-se a data de abertura do ano lectivo e a faculdade ainda não aceitou a minha inscrição. Já aqui estou há oito meses e tenho a impressão de ter falhado tudo. Telefono ao meu pai para voltar para a China.
Em casa, a minha mãe preparou carne de vaca com feijão verde. Choro sem parar e sem sequer poder falar. A família olha-me como um problema. Falhei. Mas o Egipto ficou-me na memória. Pouco dias mais tarde recebo uma mensagem da universidade do Cairo: aceitam a minha inscrição. O meu pai encoraja-me a tentar de novo, para não perder tudo. Tenho medo, mas volto a partir.
Na faculdade a minha vida muda. Os estudantes são egipcios, a maior parte cristãos coptas. Há também uma dezena de estrangeiros: gaboneses, senegaleses, guineenses e um camaronês. Entre nós falamos de tudo, menos de política ou do presidente Mubarak. Mas falamos muito de Deus, que está em todo o lado, mesmo na língua que falamos. Os egipcios acreditam que existe mesmo, que nos vai proteger e resolver tudo, incluindo a nossa subsistência. Na China há crentes e ateus, mas para toda a gente é o trabalho que assegura a subsistência.
No metropolitano do Cairo há compartimentos só para mulheres. Os homens colam-se aos vidros a olhar para elas, mas ao menos não se esfregam contra nós, como acontece nos autocarros. Um dia destes, com outros estudantes, entrei no compartimento misto, onde facto só viajam homens. Fui logo rodeada por um magote masculino, a apalpar-me as nádegas, os seios e sei lá mais o quê. Até me faltou o ar e comecei a soluçar sem barulho.
Já cá estou há mais de um ano e começo a desenrascar-me. Até já vou aos supermercados, onde se pode fazer compras sem falar com ninguém. Ando a aprender árabe e continuo a conversar com o tal meu amigo, que não gosta da minha nova vida.Um dia discutimos, zangámo-nos e deixou de aparecer. De repente senti-me livre, mas ao mesmo tempo triste, obrigada a crescer num ápice.
Em Fevereiro de 2009 encontrei uma outra chinesa num casamento e foi como um sonho feliz: introduziu-me no mundo dos chineses do Cairo. Só então me dei conta de que a nossa comunidade afinal é muito importante, com restaurantes, médicos e até vários jornais. Produzir no Egipto pode mesmo ser mais barato que na China, pelo que as nossas indústrias começam a implantar-se.
Estou agora instalada num apartamento com mais sete chinesas, entre os 23 e os 35 anos. Deixei de estar sozinha! Quase todas são originárias das regiões muçulmanas da China, mas há duas convertidas. Vieram para aprender árabe ou teologia e tencionam vir a ser intérpretes de negócios, uma profissão que permite ganhar bom dinheiro." (Continua)
Le Monde, 11/02/2013, página 16
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