segunda-feira, 18 de abril de 2011

VENDE-SE O COLISEU DE ROMA PARA EVITAR A SUA RUÍNA - 1

Este é o primeiro de quatro textos sobre a problemática do património e do turismo cultural. Da autoria de Miguel Mora e Lúcia Magi, foi publicado no EL PAÍS de 16/04/20111. Dada a sua extensão, pareceu mais conveniente reparti-lo.
Tratando-se de uma reportagem sobre a situação actual e futura do património italiano, o mais provável é que mostre igualmente para onde vamos caminhar em Portugal nos próximos anos. A crise e a austeridade já aí estão, o seu agravamento é inevitável, pelo que no sector do património não tardarão situações dramáticas. Ou surgem novas soluções conjuntas com o sector privado, com já acontece por essa Europa fora, ou assistiremos a cada vez mais derrocadas e outras maleitas, nas melhores peças do nosso já bem magro património, quando comparado com a Itália, a França...ou a Índia. Não vale a pena alimentar ilusões, até por se tratar de uma atitude nefasta.

A RUÍNA IMINENTE DO PATRIMÓNIO, POR CAUSA DA AUSTERIDADE, CONDUZ À PRIVATIZAÇÃO DE MONUMENTOS
Há vozes que consideram sobretudo populista a solução italiana


"Passou recentemente nas televisões italianas um vídeo de promoção do turismo cultural. Tem por título Mágica Itália, sendo apresentado pelo próprio primeiro-ministro, Sílvio Berlusconi, que sorrindo vai recitando: "Visita Itália, o país que deu ao mundo 50% dos monumentos agora "Património da Humanidade", da UNESCO. Não é totalmente verdade. Há um zero a mais na percentagem. Itália tem exactamente 5% dos 911 sítios protegidos, até agora classificados pela UNESCO como património mundial. Mas Berlusconi lá vai prosseguindo, sempre sorridente: "Mais de 100 mil igrejas e monumentos, 40 mil edifícios históricos, 3.500 museus, 2.500 sítios arqueológicos e mais de mil teatros. Já sabias?"
A actual política cultural italiana, no país do Grand Tour [expressão que designa a tradicional viagem realizada na Europa pelos jovens britânicos da upper class nos séculos anteriores, que está na origem do vocábulo turismo e da actividade turística], do Renascimento e do Império Romano, de Piero de la Francesca e de Verdi, de Dante e de Pasolini, converteu-se pouco a pouco em algo parecido com um tesouro em decomposição. A série de más notícias dos últimos meses constitui um martírio, para mais quase diário. Três derrocadas em Pompeia, o anúncio de uma amnistia para os bens arqueológicos roubados, os cortes orçamentais para as fundações líricas, a deterioração grave da Ponte do Rialto, em Veneza, o encerramento de teatros e de bibliotecas, as manifestações e greves de artistas e trabalhadores do sector por todo o país, a ameaça de encerramento do Instituto Luce, a filmoteca histórica da Cinecitá, a contratação de alguns mafiosos em liberdade condicional, para vigilantes do Museu Abatellis, em Palermo,  o escândalo de corrupção na Protecção Civil, que se encarregava de organizar grandes eventos culturais e religiosos, gerindo em simultâneo de forma opaca e em condições de emergência sítios arqueológicos, teatros e museus, como a Galeria dei Uffizi, em Florença.
De facto, num tal clima de acentuada decadência, a única boa notícia dos últimos tempos parece ter sido que o Coliseu de Roma vai ser finalmente restaurado. Com fundos privados. As obras até já começaram, com alguns ensaios: limparam-se alguns fustes e por baixo da camada escura formada sobretudo pela poluição automóvel, surgiram matizes e tonalidades de mármore rosado, de uma beleza insólita. As imagens desta operação de restauro, financiada integralmente pelo magnata do calçado Diego Della Valle (25 milhões de euros), contribuíram para amainar um pouco a polémica levantada pela pouco transparente assinatura do contrato entre o comissário especial da área arqueológica de Roma, a Superintendência dos Bens Culturais e a empresa de calçado do senhor Della Valle.
Mediante esse acordo, a TOD'S [marca de calçado fabricada e comercializada pelo citado mecenas] compromete-se a restaurar o anfiteatro romano do século I, detendo em contrapartida, em regime de exclusividade, todos os alugueres e direitos de imagem do Coliseu de Flávio, tanto em Itália como no estrangeiro. Poderá colocar a sua marca em todas as entradas e nos andaimes, bem como construir um centro de serviços na área arqueológica mais protegida do Mundo.
O acordo foi assinado em 27 de Janeiro passado, mas o texto só foi dado a conhecer há cerca de duas semanas, quando o sindicato UIL entregou na procuradoria de Roma e no Tribunal de Contas um documento expressando dúvidas sobre o âmbito real do acordo, solicitando que se investiguem possíveis indícios de delito.
TOD'S conservará durante os próximos 15 anos, prorrogáveis, a exclusividade sobre a imagem mundial do monumento romano e, enquanto durarem as obras de restauro, tratará igualmente da comunicação e dos respectivos direitos de comercialização. Della Valle subscreveu o documento com o comissário extraordinário da área arqueológica de Roma, o arquitecto Roberto Cecchi, nomeado plenipotenciário para o efeito por um decreto especial da presidência do governo. Cecchi é um dos nomes que o executivo italiano emprega desde 2001 para implementar a sua política de "valorização do património cultural". O seu superior hierárquico é Mário Resca, ex-conselheiro-delegado da McDonald's  Itália. O primeiro-ministro Sílvio Berlusconi nomeou-o com o objectivo de vir a explorar os monumentos e museus com uma atitude comercial e privada." (Continua)

1 comentário:

Rui disse...

Se a riqueza está cada vez mais concentrada, qual a admiração? A seguir serão os chineses a comprar os monumentos e a restaurá-los. Abrirão ao público os que quizerem: será assim o maravilhoso mundo liberal no futuro...os governos locais, uns palhaços.
Até aos próximos levantamentos populares e guerras civis.