É um dos truísmos deste tempo: estamos infinitamente mais informados sobre as degraças do mundo. A comunicação social traz-nos quotidianamente a nossa casa, à cozinha, à sala de estar, ao quarto, ao coração, horror, miséria, tortura, abandono, pobreza, cólera colectiva, indignações, revoltas, repressões...
Em Túlipa (Edições Gallimard, 1946), Romain Gary escreveu que o mais aterrador na história do genocídio nazi, não foi Auschwitz mas "a aldeia vizinha" -onde, sob o fumo dos cadáveres, as pessoas continuavam tanquilamente a governar a sua vida. O problema é que agora vivemos todos na "aldeia vizinha".
Não podemos senão ir governando a nossa vida enquanto ao nosso lado (e o que é que agora não é ao nosso lado?) seres humanos sofrem, de forma escandalosa, inadmissível. Volens nolens (quer se queira, quer não), cantámos todos durante a ocupação alemã, dançámos ao lado do goulag, divertimo-nos durante a deportação dos escravos, fornicámos ao lado de Abou Ghraïb.
Nos nossos dias, cada qual escolhe aquilo que deseja saber, aquilo que suporta saber, ou aquilo que julga mais cómodo saber. As duas escolhas extremas são a santidade (está-se em permanente estado de indignação e de fúria, obstinado-se a tentar endireitar o que está torto e a melhorar o mundo, ouve-se a rádio enquanto se navega na Internet, ou com a televisão ligada) e o nihilismo (para quê fazer o que quer que seja? A humanidade é grotesca, o mundo é uma imensa pândega e o amor uma ilusão, destinada a impedir-nos de encarar a verdade atroz: vamos todos morrer). Estes dois extremos juntam-se aliás no absolutismo: num caso, a política é tudo; no outro, nada. O nosso cérebro parece ter uma inclinação para o tudo ou nada; adora usá-lo para tudo!
Quais são os problemas que devemos considerar que nos dizem respeito? Unicamente os que, de forma directa e evidente nos tocam? A nós ou aos que nos são próximos? Mas então que "proximidade" devemos valorizar? A nacionalidade, a classe social, o sexo masculino ou feminino, a cor da pele, a religião, a etnia...? Porquê então houve tantas lágrimas nos lares franceses, aquando do resgate dos mineiros chilenos ou do terramoto no Haiti? Li um dia destes o testemunho de uma israelita que, como vive junto à fronteira libanesa, afirma pensar continuamente num drama ocorrido em 1976: "terroristas árabes" surgindo na noite escura, penetrando em casa de uma família judia e massacrando todos eles. Concentrar-se de forma tão absoluta nessa tragédia antiga evita-lhe aparentemente ter de pensar nas que aconteceram na região desde essa data, no Líbano, em Gaza ou alhures.
Nestes coisas, qual seria a boa distância, a mais conveniente, a mais cómoda? Noutros termos, como salvaguardar a nossa necessidade de felicidade, sem por outro lado cair na política da avestruz? Numa recente mesa-redonda, ouvi o dramaturgo Jean-Claude Grumberg avançar duas opiniões diferentes sobre este assunto. A primeira contra os nihilistas: "Todos temos necessidade de gostar de viver." A outra contra as avestruzes: "Ninguém tem o direito de pretender ignorar que o mundo é o que é." Embora concordando com ambas as opiniões, não consigo vislumbrar como conciliá-las. Ninguém consegue encarar toda a realidade sem pestanejar e, de tanto ser atingido pela realidade dos outros, esquece-se tudo o que se pode fazer para embelezar a nossa.
Num livro tão minúsculo quanto denso, editado em 1952, o autor sueco Stig Dagerman explica-nos porque é que "O nosso desejo de lenitivo" não pode ser inteiramente satisfeito. Gostei outrora do livro; agora acho-o orgulhoso e imaturo (palavras se calhar sinónimas). É o livro de um jovem que sofre absolutamente, desespera absolutamente e se proclama absolutamente só. Simplificando, o importante para ele é que tudo, na alma, tenha a intensidade do absoluto. Nada tenho contra o suicídio mas tenho a certeza de que se Dagerman não tivesse escolhido a morte aos 31 anos, a vida teria tido tempo de o surpreender. O acaso fez com que, pouco tempo após a releitura de Dagerman, descobrisse outro texto sobre lenitivos. Trata-se de uma notícia redigida pela escritora e cantora do Québec, Suzanne Jacob, para acompanhar a reedição do seu CD "Uma humana ambulante". Evocando as suas tournés nos anos 70, escreve: "Penso agora que cantei unicamente para consolar alguém inconsolável. Inconsolável de quê? De uma injustiça. Cada um de nós sofre de uma injustiça que lhe é própria e para a qual não há lenitivo possível."
O lenitivo ao qual aspirava Dagerman, como todos os crentes -o grande, o imenso, o definitivo, o absoluto, aquele que compensaria definitivamente a obrigação de morrer -não se consegue encontrar, tenho a certeza. Em contrapartida, existem mil pequenos lenitivos pontuais, que têm a vantagem de não ser nem tudo nem nada. Falamo-nos, ajudamo-nos a ultrapassar um luto, escrevemo-nos cartas, escutamos o riso sonoro de uma criança, convidamo-nos para um passeio, admiramos uma paisagem, dançamos um samba, partilhamos uma refeição, trocamos novidades... é a vida humana, colorida, múltipla, imprevisível, matizada, instável, impossível de resumir.
Para que a nossa empatia seja algo mais que uma pose social, parece-me que não deveria ser atributo unicamente dos que são parecidos connosco (porque nesse caso não temos qualquer mérito), nem da espécie humana no seu conjunto (porque então viramos santos ou nihilistas), mas algo entre os dois. Admitamos, por conseguinte, que somos obrigados a negociar e a procurar constantemente nesta matéria, porque afinal ninguém escreveu a peça da qual faz parte o papel que estamos a representar.
E desconfiemos sempre dos absolutos!"
Nancy Huston, Le Monde, 26/12/10
Escritora e Jornalista, Nancy Huston nasceu no Canadá e foi educada nos Estados-Unidos. Desde 1973 vive em França. Escreve tanto em inglês como em francês. Publicou "A espécie efabuladora", 2008; "A rainha Jocasta", 2009 e "Infravermelho", 2010.