terça-feira, 21 de dezembro de 2010

AS CONTAS FANTÁSTICAS DO PAI NATAL

"As crianças ainda não o sabem, mas há alguns meses o Pai Natal saiu da Lapónia e foi habitar a taiga na Manchúria, no nordeste da China. Com uma admirável consciência ecológica; inquieto perante as consequências do aquecimento global sobre a vitalidade sexual das suas renas; preocupado com a inescapável necessidade de minorar a sua pegada-carbono; procurou aproximar-se o mais possível das fábricas de todas as prendas que nos vai trazer, a nós, ricos ocidentais. Devemos aplaudir a sua atitude cidadã e responsável.
Três horas de compras de Natal nos grandes armazéns parisienses permitem compreender, muito melhor que num ano inteiro de aulas na Faculdade de Economia, alguns dos grandes problemas actuais da economia mundial. A começar pelo desiquilíbrio das contas exteriores.
A guirlanda eléctrica para decorar o pinheiro natalício? Made in China. O casaco polar em lã para o afilhado? Made in China. Os ténis para a sobrinha? Made in China. O Iphone? Made in China. Até a cana de pesca de marca americana, uma auto-oferta, é made in China.
Parece aquele desenho humorístico de Pessin, publicado há alguns anos no Le Monde. Um animador de televisão apresenta o seu convidado: "Especialista da economia mundializada, o senhor vai falar-nos esta noite do seu último livro "Há que boicotar os produtos chineses". Sentado no chão, o autor convidado está completamente nu.
Para contribuir para o reequilíbrio das balanças comerciais, teria sido necessário oferecer todo o teatro de Claudel, na Pléiade, um saco de senhora Louis Vuitton, ou ainda um maravilhoso comboio-miniatura em madeira, da região do Jura, mas ninguém nos pediu nada disso. E fica-se a pensar que é quase um milagre se, no fim de contas, a Europa apenas tem um défice comercial para com a China de 200 mil milhões de euros, e os Estados Unidos de 350 mil milhões de dólares.
Durante a nossa maratona de compras, foi quase como se tivéssemos assistido em directo ao voo dos nossos euros para os cofres já atafulhados do Banco Central da China (2.700 mil milhões de dólares). Um décimo de cêntimo, quando muito, foi para a empregada da caixa, quase de certeza a ganhar o salário mínimo, mas rainha da produtividade e do sorriso espontâneo.
Começámos a ter vertigens ao compreender que estes euros transferidos para a China vão, em parte, voltar à Europa. Servirão para comprar títulos do tesouro, que o mesmo é dizer, para financiar a nossa dívida pública, os nossos défices, as enfermeiras, os professores...e para pagar as prendas de Natal. As vertigens aumentaram ao percebermos que a nossa generosidade contribui directamente para consolidar " a-ditadura-internacional-dos-mercados-financeiros" e para reforçar o poder sádico dos nossos credores.
Uma outra lição de economia do nosso périplo para os lados do "boulevard" Haussmann (onde estão localizados vários grandes armazéns parisienses, designadamente os dois mais conhecidos: Le Printemps e Galeries Lafayette), é que afinal o consumo continua de boa saúde. Apesar de, segundo parece, os franceses irem gastar este ano um pouco menos (-4%) com o Natal. Se calhar convém ver nesta ligeira descida uma consequência do "efeito Ricardo-Barro", segundo o qual, o agravamento da dívida incita as pessoas a poupar, tendo em vista os inevitáveis aumentos de impostos.
O que de qualquer modo está fora de dúvidas, é que gastamos demasiado, que gastamos em excesso, tanto individualmente como colectivamente, em relação àquilo que produzimos em termos de riqueza. Bastava observar este sábado da parte da tarde todos os clientes a pagar com o cartão de crédito do respectivo grande armazém. Tínhamos ali, à nossa frente, um condensado da crise financeira e da nefasta tendência dos cidadãos dos países industrializados, bem como dos respectivos governos, para viverem a crédito.
Dado que as filas de espera são demoradas, apesar do profissionalismo das empregadas das caixas, o nosso espírito teve muito tempo para vagabundear. E para filosofar sobre esta nossa sociedade de consumo. Tentando lembrar-nos das nossas leituras enquanto estudante e das críticas tão inteligentes de Baudrillard. Tão inteligentes que afinal parece que não as teremos compreendido o suficiente para as assimilar e agora recordar em detalhe.
Lembrando-nos também das nossas aulas de história. A sociedade de consumo aparece nos finais do século XIX, quando os homens começam a usar as seus rendimentos para além do indispensável para assegurar a sobrevivência. A usar o dinheiro ganho tão duramente para comprar outras coisas além da alimentação. Em 1900, uma família de operários parisienses gasta cerca de 70% dos seus rendimentos para se alimentar (15% para se alojar, 10% para se vestir e 5% para o resto).
Esta proporção de despesas alimentares no orçamento doméstico, tem diminuído de forma constante desde então: ainda cerca de 40% logo após a segunda guerra mundial, apenas 20% no início da década de 70 e menos de 13% em 2009. A sociedade de consumo é, antes de mais,  uma vitória sobre o estômago vazio -uma língua de fora, para esconjurar a fome. Mesmo se corrompe a alma, se nos retira qualquer transcendência, não podemos ainda assim deixar de ver nela um imenso progresso.
Desde há cinquenta anos, os franceses têm aumentado sempre o consumo, excepto em 1993. Apesar da crise, o consumo das famílias francesas progrediu de 0,9% em 2008 e 2009. Longe, bem entendido, do ritmo altista de 5% anuais, durante os "trinta gloriosos" (1945-1975), quando os rendimentos aumentavam a grande velocidade (mais de 10% anuais), duas vezes mais depressa que a inflação.
Os "trinta gloriosos" foram antes de mais os "trinta gastadores", com a explosão do consumo de massa e a compra por toda a gente de frigoríficos, máquinas de lavar, automóveis, aparelhos de televisão (dois mil em 1950, dois milhões em 1960).
Se calhar, com a crise, estamos agora a entrar nos "trinta poupados", nos "trinta razoáveis". Por conseguinte, só lá para 2040, após esta longa ascese financeira e consumidora, é que o Pai Natal poderá começar a pensar no regresso à sua Lapónia Natal."


Pierre-Antoine Delhommais, Le Monde, 20/12/10

1 comentário:

Anónimo disse...

O consumo de uns é o "progresso" de outros. Quando as coisas se desequilibram há ainda uns que fazem o papel de tontos. O Diário Económico informa que em Portugal a Mercedes-Benz deve ultrapassar, este ano, as vendas da Renault!Por isso a sra. Merkel e o Bundesbank dão-nos ordens, acham que gastamos muito (ironia: a comprar os seus produtos) e chamam-nos PIGS.
Só que em breve os chineses vão lançar o seu veículo utilitário a que se seguirá o seu avião a jacto comercial. Talvez aí todos acordem, incluindo os ricos, produtivos e eficientes alemães!
Veremos quantos se juntarão aos tais PIGS de hoje!
Pedro Miguel