sexta-feira, 1 de abril de 2011

SOBRE MUSEUS E POÇOS SEM FUNDO...

Numa altura em que Corvêlo de Sousa insiste na sua ideia segundo a qual as obras da Envolvente ao Convento de Cristo e do Complexo museológico da Levada "são essenciais para o futuro e desenvolvimento de Tomar" (Cidade de Tomar de 01/04/11, página 4), parece-me oportuno publicar a tradução de uma notícia sobre a gestão dos museus franceses. Para que os senhores autarcas possam tomar conhecimento da cegada em que se e nos estão a meter. E para que mais tarde não se venha a dizer que ninguém avisou atempadamente.

CULTURA
Museus: o outro lado do belo cenário

"Paradoxo: os museus nacionais franceses vão bem e...afinal nem tanto assim. Tal é o diagnóstico vindo do Tribunal de Contas, que acaba de auditar dez anos de gestão de 37 museus e palácios nacionais, entre os quais os mais importantes: Museu du Louvre, Centro Pompidou, Palácio de Versalhes...
O crescimento, por vezes espectacular, destes museus públicos tem sido mal gerido, afirma a instância máxima de controlo orçamental. É verdade que as receitas próprias têm vindo a aumentar, mas as despesas assumidas pelo Estado cresceram proporcionalmente muito mais. Qual o horizonte financeiro? Mil milhões de euros de obras de restrauro. O Tribunal de Contas é categórico: "insustentável" para o Estado.
Le Monde, 31/03/11, primeira página

"TRIBUNAL DE CONTAS CRITICA A GESTÃO DOS MUSEUS E PALÁCIOS NACIONAIS
A França é líder mundial dos museus e palácios nacionais. Mas os custos são demasiado elevados e o público pouco diversificado"

"O Tribunal de Contas acaba de avaliar dez anos de gestão de 37 museus e palácios nacionais, entre os quais os mais importantes: Louvre, Centro Pompidou, Orsay, Versalhes...
O relatório de 200 páginas, publicado em 30 de Março, não é uma avaliação individual, mas sim a de todo um sector. Julgamo-lo de boa saúde, com novos motivos de atracção, renovações e uma clientela cada vez mais numerosa. É verdade, mas o Tribunal revela o outro lado do cenário e um futuro bem mais sombrio. Um só aspecto é considerado positivo: em dez anos os museus e palácios nacionais desenvolveram a sua oferta -mais salas, melhores horários, mais exposições, mais aquisições de obras de arte, mais catálogos, mais eventos. Mas este crescimento, segundo o Tribunal de Contas, tem sido mal gerido.
Trata-se do miolo do relatório. Para os juízes, um dos objectivos dos grandes museus e palácios nacionais é de aumentar os recursos próprios, para depender o menos possível do orçamento de Estado. "Nada foi feito nesta área". A maior parte das vezes sucedeu até o oposto. As receitas próprias subiram, nomeadamente pelo recurso ao aumento do preço dos bilhetes e ao mecenato, mas as despesas de funcionamento aumentaram muito mais. Resultado, a percentagem das receitas próprias dos 37 estabelecimentos públicos auditados, que era de 48% em 2004, baixou para 39% em 2010.
Consequência de tal estado de coisas, os subsídios do Estado aos museus e palácios nacionais aumentaram 58% em dez anos. "O dobro em relação ao orçamento do Ministério da Cultura e o triplo em relação ao Orçamento de Estado". Se acrescentarmos as isenções fiscais ligadas ao mecenato cultural, a ajuda aos museus e palácios do Estado progrediu entre 70% e 90%. Que outro sector da sociedade teve assim tanto dinheiro?
De forma substantiva, o Tribunal afirma que os museus e palácios não podem continuar a aumentar os efectivos humanos, sendo evidente "a sua reticência ou incapacidade para compensar com aumentos de produtividade uma redução das ajudas estatais". Reduzir os custos é "a única resposta", referem os magistrados. Aumentar o preço das entradas? Não é democrático. Incrementar o mecenato cultural? É uma perda importante para o Estado, "que aliás está por avaliar".
O documento em questão aborda em detalhe a problemática do mecenato cultural, assinalando os seus efeitos financeiros negativos. Foca igualmente "a questão delicada das contrapartidas". Fica-se assim a saber que o Museu do Louvre estava disposto a baptizar a sala da Mona Lisa com a marca do patrocinador, a Nippon Television, que financiou o restauro. Na mesma linha, a Galeria de Apolo esteve quase a receber a designação de Total [equivalente francês da Galp]. Foi o Ministério da Cultura que recusou ambas as hipóteses, acrescentando não estar disposto "a vender o Museu do Louvre por apartamentos".
Sobre a gestão, os juízes concluem com uma pesada ameaça. O Estado lançou ou vai lançar, consoante os casos, um programa de grandes obras nos museus e palácios que lhe pertencem: Museu Picasso, salas de arte islâmica no Museu do Louvre, Museu das Civilizações, em Marselha, Centro de Conservação dos Museus, em Cergy-Pontoise, Grand Palais, Museu da História de França... Tudo avaliado em cerca de mil milhões de euros "o dobro dos gastos da década anterior". "É insustentável", clamam os magistrados.
Outro ponto negro é o da clientela. Assim à primeira vista, o último decénio foi "extraordinário", com mais 10,3 milhões de visitantes, um incremento de 58% -o mais forte da Europa. Entre os dez museus e palácios mais visitados do Mundo, quatro são franceses. O Museu do Louvre aparece em primeiro lugar, seguido de Versalhes, Centro Pompidou e Orsay. Porém, uma das principais missões dos museus é atrair o público que raramente ou nunca vem, sobretudo os cidadãos mais modestos, os jovens menores de 18 anos e os habitantes da província. Sucede que estes 10 milhões de visitantes a mais, são quase exclusivamente turistas, clientes habituais, geralmente parisienses séniores e da classe média superior. O tribunal refere mesmo " uma clientela parisiense de "connaisseurs", que aumenta a olhos vistos.
Igualmente negativo: a percentagem de franceses que nunca visitaram um museu tem vindo a aumentar. No que se refere aos jovens, houve 17% de menos de 18 anos entre os visitantes dos museus em 2003, percentagem que baixou para 15,6% em 2010, mesmo assim constrangidos -sobretudo em grupos escolares ou com a família.
Os magistrados criticam igualmente os preços das entradas. A Lei dos Museus, de 2002, estabelece que o preço do bilhete deve "favorecer o acesso a uma clientela o mais ampla possível". Apesar disso, os preços dos ingressos aumentaram em dez anos 35,5% no Louvre, 113% em Versalhes e até 160% no Centro Pompidou. Muito acima dos 20% de inflação durante o mesmo período.
O tribunal reconhece que "a via é muito estreita": Como conseguir em simultâneo democratizar o acesso e aumentar as receitas próprias? Denuncia igualmente "uma política nacional cada vez mais parisiense", estranhando que vários museus recentes e até a "Maison de l'histoire de France" insistam na implantação em Paris.
Referem os magistrados que enquanto o Estado ajuda substancialmente os museus parisienses, o auxílio das colectividades locais aos museus das regiões diminuiu em 50%, com um resultado trágico em termos de regionalização: os 26 museus da região parisiense (de um total de 1200 em França), atraíram 49% da clientela global em 2002 e 58% em 2009...
Em contrapartida, o Tribunal louva os "inegáveis progressos" na gestão das colecções, tanto no que concerne à conservação como às novas aquisições. Com um senão: as reservas. Em Paris, a ameaça latente de uma cheia do Sena, obrigou os museus a mudar para um armazém provisório, enquanto aguardam a construção de um local adequado em Cergy-Pontoise...previsto para 2020.
Apoiando-se nos exemplos do Louvre ou de Orsay, os relatores demonstram que a tradição de empréstimo gratuíto entre si de obras de arte deixou de existir, tendo-se mesmo transformado numa "hipocrisia", designadamente no caso dos alugueres próximos do "mecenato", um negócio chorudo. E concluem: "Seria lamentável que tais operações se desenvolvam, sem que o seu enquadramento ético e científico tenha sido previamente definido."
Ao longo de todo o relatório, o Tribunal aponta um só responsável: o Estado, que já não desempenha o seu papel de regulador. Está certo que os museus e palácios nacionais sejam agora mais autónomos, desde que o Estado determine as grandes linhas de actuação, designadamente preços dos bilhetes, mecenato, empréstimos, visitantes... Os magistrados apresentam 23 propostas, todas no mesmo sentido: que o Estado se preocupe menos com a política da oferta e mais com a da procura, como forma de diversificar a clientela. Fazer menos mas melhor, para toda a gente."

Michel Guerrin, Le Monde, 31/03/11, página 24
Tradução e adaptação de António Rebelo

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