domingo, 10 de janeiro de 2010

CRISE ECONÓMICA: O QUE AINDA ESTÁ PARA VIR - 2

Tradução da 2ª parte da entrevista de Michel Rocard ao semanário NOUVEL OBSERVATEUR de 06/01/10. para melhor entendimento, recomenda-se a leitura da primeira parte, no post anterior.
"-Quer dizer que ainda não aprendemos nada com esta crise ?
-Pois não, porque isso implica pensar as coisas de outro modo. Teremos de aguardar talvez mais vinte anos. As novas explosões do detonador financeiro vão agravar tanto a desorientação como o desemprego. E acentuar os desequilíbrios sociais, dando assim um bom impulso à reflexão intelectual. Após mais três ou quatro agravamentos súbitos, acabaremos todos por compreender.
-Significa que só depois de mais três ou quatro crises como esta é que haverá mudança do programa económico ? (ver nota 1 no final)
-Não o desejo, mas temo que sim. A análise da crise ainda está por fazer. Para a parte bancária e financeira, diz-se que houve falta de ética e desaparecimento da moral. É uma conclusão repousante. Se houver retorno à moral, não haverá necessidade de mudar outras regras e tudo passará a correr muito bem.
Mas é falso. Impõe-se regressar às causas da estagnação económica. Os friedmanianos tinham postulado desregulamentação >diminuição de impostos >facilidades de crédito para estimular a economia. Já vimos onde isso nos levou. A verdadeira análise implicaria condenar as teses do senhor Milton Friedman e de 13 outros prémios Nobel de economia da mesma escola de pensamento. Acontece, todavia, que em todos os países desenvolvidos, a selecção dos conselheiros dos gabinetes ministeriais, dos dirigentes da banca e dos especialistas em economia, foi feita no âmbito do politicamente correcto em relação a tal doutrina. Acontece assim a esse monumento chamado "Ciências económicas", o que aconteceria na Medicina, caso se viesse a concluir que Louis Pasteur era um impostor. E esta autêntica derrocada intelectual é uma derrocada de homens de muito poder e de grande reputação até agora. E que continuam no vértice das várias pirâmides hierárquicas. Temos de convir que não é nada cómodo para eles.
-Mas devia ser feito pela social-democracia, que inventou o modelo dos "Trinta gloriosos" (ver nota final 2), mas veio a sofrer um acentuado apagamento intelectual e ideológico, devido à concomitante subida dos neo-conservadores e dos friedmanianos. E que agora não beneficia do refluxo de tal paradigma, precisamente porque não se mostra capaz de inventar o mundo que aí vem.
- Assim tratada, coitada da pobre social-democracia ! Em 1920, quando o camarada Lenine tomou o poder na Rússia e lhes disse -"Sigam-me", a social-democracia retorquiu-lhe "Não, primeiro a liberdade". Mas necessitou de mais vinte anos para concluir o raciocínio: o enraízamento na economia de mercado. E ao mesmo tempo foi sempre proclamando que o mercado não se auto-equilibra, sendo necessário corrigir as desigualdades sociais. Não se trata de macro-economia. É um postulado político em matéria de macro-economia. Segundo imperativo -a regulação. Recomendada pelos sociais-democratas por razões éticas, é igualmente o que há de melhor no domínio da macro-economia, como agora se tornou bem claro. Aliás, a social democracia até anunciou a crise: basta ler o relatório do antigo primeiro-ministro dinamarquês Nyrup Rasmussen, em 2006.
Apesar disso, ninguém ouve a social-democracia porque o paradigma mudou. Durante os anos do grande crescimento regulado, o tópico eleitoral da direita era -vote capitalista, terá algumas hipóteses de chegar à riqueza graças ao seu trabalho. O novo sonho dos últimos decénios já era outro -vote capitalista, porque assim poderá enriquecer rapidamente na bolsa. E aí o sistema não aguentou. Porque não pode aguentar. Engendra bolhas especulativas que rebentam umas após outras. Nada de grave. Continua-se a embarrilar o povo -vote capitalista e pode enriquecer a especular na bolsa. A opinião pública europeia apoiou tal paradigma, como se viu nas eleições europeias. Vamos portanto continuar na mesma. E como a esfera financeira entretanto se reconstituiu tal como era antes da crise, incluindo a sua explosividade, não tarda muito vamos ter outra crise.
-A irrupção da questão ambiental em pleno debate sobre o crescimento económico, é um factor de aceleração da tal mutação, ou uma dificuldade suplementar ?
-Trata-se de uma coincidência histórica agravante. E um dos sub-produtos dos excessos do desenvolvimento não regulado. Devia-se ter tratado desse aspecto mais cedo, caso a ideia de planeamento e regulação tivesse continuado nas mentes. Ao mesmo tempo, inviabiliza a esperança de sair da crise graças ao retorno ao anterior modelo de crescimento. O que nos traz novamente à questão da social-democracia.
Nesta crise, até agora foram os sociais-democratas aqueles que menos sofreram. Nos grandes combates do século passado -120 milhões de mortos- havia quatro forças: comunismo, fascismo, capitalismo puro e duro, social-democracia (a mais pequena de todas). A social-democracia acabou por se juntar ao capitalismo contra os outros totalitarismos, porque a liberdade está enraizada na economia de mercado. Mas a social-democracia continuou a proclamar que não deixaria o mercado resolver os problemas de igualdade entre os cidadãos. A nossa identidade é portanto a regulação. É difícil encontrar algo mais actual.
Há dez anos, a moda era afirmar que o modelo escandinavo estava a dar as últimas. Mas eles salvaram-no, um pouco mais abaixo. O âmago do processo deles é a ética da protecção social e da redução das desigualdades. É por aí que entram no sistema económico. E souberam preservá-lo. E depois trata-se de verdadeiras democracias. Os países escandinavos, que têm os impostos mais elevados do mundo, são também aqueles onde todas as sondagens indicam a melhor relação opinião pública/governo. Porque a social-democracia é antes de mais um método de escuta do outro. Um enraizamento na liberdade pelo mercado, acompanhado por uma forte regulação e santificado por uma capacidade democrática para convencer o povo a endossar tudo isso. Repare como a Dinamarca sai da crise ! A social-democracia é antes de mais uma metodologia da acção política, na qual a limitação das desigualdades constitui a entrada ética na organização social. O mercado livre, mas vigiado. O que é válido igualmente para o ambiente. A saída da crise passa inevitavelmente pela social-democracia.
A partir daqui, Michel Rocard respondeu à pergunta "O PS francês é social-democrata ?", com uma dissertação de trinta linhas, que obviamente interessa sobretudo aos franceses, a qual concluiu desta forma: "Qualquer militante socialista de base sonha com a unidade da esquerda, pelo menos nas eleições. Daqui resulta a tendência para usar o palavreado da extrema-esquerda, o que tem elevados custos eleitorais. Mas vou ficar por aqui. Trata-se da minha família política. Comemorei o mês passado 60 anos de filiação. Não me levem a mal se prefiro preservar a nostalgia para mim próprio."
-A sua visão da crise do modelo capitalista torna-o pessimista ?
-De modo nenhum ! É uma aventura absolutamente prodigiosa no plano intelectual, como nunca houve outra desde a Libertação, em 1945. É agradável constatar que afinal aquilo que pensávamos há cinquenta anos, não era assim tão estúpido. Ser de novo portador de futuro. Quando vejo pessoas que não são propriamente imbecis, como Obama ou Sarkozy, usar os nossos instrumentos analíticos, fico mais descansado. O relatório sobre os instrumentos para medir a economia, solicitado a Fitoussi, Stiglitz e Sen, é algo importante, muito importante mesmo. E é um produto da crise. Creio, no entanto, que vamos levar 20 ou mesmo 30 anos a ultrapassar esta crise. E o teatro de operações é antes mais o campo de batalha intelectual."
Entrevistadores Dominique NORA e Dennis OLIVENNES. Título original da entrevista "Comment je vois l'avenir". Título, tradução, adaptação e notas de António Rebelo. Para os francofalantes a entrevista integral está disponível em nouvelobs.com
Nota 1 - Os jornalistas usaram o termo "logiciel" =software, neste caso = software mental
Nota 2 - A expressão francesa "Les trente glorieuses" refere-se aos 3o anos de constante crescimento económico robusto, entre 1945 e 1975.

3 comentários:

Anónimo disse...

"A saída da crise passa inevitavelmente pela social-democracia."

O Laranja

Anónimo disse...

O amigo que assina "O laranja" deve estar a ser vítima de uma ilusão de óptica. Todos sabemos que o partido laranja, o PSD, de social-democrata só tem o nome. De resto, desde sempre praticou uma política liberal quando esteve no governo.

Anónimo disse...

Provavelmente era uma chalaça...