quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Meditar é preciso

Houve um tempo em que quase todos procurámos militar. Agora é chegado o tempo de meditar, sob pena de perdermos o comboio. Em maré de transcrições e com os partidos locais fracturados, à pesca de ideias e de candidatos para encher as listas, parece-me oportuno dar a palavra ao conhecido escritor Vasco Graça Moura.
Os destaques coloridos são da responsabilidade de Tomar a dianteira.

"Falar da crise"

"Passamos o tempo a falar da crise. A crise tornou-se, não apenas o abominável pano de fundo da nossa existência, mas ainda uma dimensão perversa e desestruturante da nossa vida individual e colectiva. Por via da crise, estimula-se o nosso pessimismo atávico, mas talvez ela, na sua monstruosa dimensão, contribua para nos despertar de alguma inconsistência não menos hereditária.
Éramos propensos a crer que, entre mortos e feridos, alguém havia de escapar. Agora, começa-se a ver que ninguém escapa. E, por mais que haja quem tente incutir nos ânimos algumas partículas de esperança, o país mantém-se desconfiado e renitente. Vivemos num terramoto oscilante e a verdade é que, entre pesadelos e catástrofes, nos custa a acreditar que as coisas possam tornar-se menos duras em tempo útil.
É claro que esta reacção é profundamente humana. As pessoas, quer as incluídas no vasto grupo da população envelhecida, quer de outras faixas etárias, sentem-se resvalar para um misto de desalento e de revolta, entre os problemas agravados do desemprego e as dificuldades crescentes do dia-a-dia, quer nos seus casos individuais, quer nos que atingem os seus familiares e conhecidos. Mas, em termos de consciência colectiva, acaba por não se ter bem a noção daquilo que se pode fazer ou de como é que o presente estado de coisas poderia ser alterado para melhor. A crise não é apenas económica e financeira. É também moral e cultural. E vai durar muito, muito tempo.
De todos os lados se brada contra a catadupa dos infortúnios. Lança-se mão de enquadramentos ideológicos e de chavões de toda a ordem, rapidamente convertidos em acusações estridentes. Desenvolve-se conscientemente uma estratégia do descrédito das instituições e dos seus responsáveis. Esgota-se o leque das argumentações sem que se vislumbre qualquer remédio concreto que ultrapasse as fronteiras de uma retórica acintosa.
As coisas já são, em si, muito complicadas, quer no plano nacional, quer no internacional. Mas é claro que, da banda dos radicalismos, as soluções são expeditivas e simplistas. Deve-se? Não se paga e pronto... Precisa-se? Tem de se ter custe o que custar. Há que cumprir as leis? Apela-se à insubordinação e espera-se o conflito de rua. E assim sucessivamente. Vociferar é preciso, ajudar a resolver não é preciso...
Na luta política, ninguém está disposto a viabilizar absolutamente nada. Da parte do principal partido da oposição, o embaraço dos socialistas é total. O protesto à escala geral engrossa diariamente com as vozes deles grasnando por tudo e por nada, e o tremendismo torna-se ainda mais sinistro porque não era de esperar que desse quadrante deveras desmemoriado viesse uma radicalização assim.
Vê-se que não existe para aquelas bandas nenhuma ideia nova, nenhum programa consequente, nenhuma garantia de mudança. Confunde-se as propostas de medidas com os objectivos delas. O que é apresentado como solução é o que toda a gente quer, do crescimento económico à pretensa intocabilidade do estado social, passando pela redução do desemprego.
As medidas que o governo toma ou anuncia são com certeza passíveis de acesas discussões. Pode até ser útil e saudável discuti-las. Mas não basta proclamar-se em vários registos que elas afectam profundamente as pessoas. Isso já se sabe e o próprio governo não o esconde.
Agora também já se pode supor que o PS, se chegar a ser governo, não tem soluções drasticamente diferentes. Por exemplo, já anunciou que não pode prometer reduzir as taxas de IRS... Compreendem-se algumas evasivas. Se são do mesmo quilate as soluções que o PS diz andar a preparar para ter um programa de governo em carteira, no caso de eleições antecipadas, então podemos interrogar-nos sobre a oposição que temos.
O PS também diz que não quer uma crise política. Esta, tal como o PSD e o CDS de há muito dizem, seria profundamente nociva e colocaria Portugal em dificuldades ainda maiores. Só os irresponsáveis a desejam. Mas não se vê que os socialistas façam seja o que for de modo a contribuir para que se saia dela. Dir-se-ia que andam empenhados em ajudar a que essa crise se torne ainda mais funda..."

Vasco Graça Moura, Diário de Notícias, 23/01/2013, página 54

Tanto a nível nacional como nas maviosas e pantanosas margens nabantinas.

2 comentários:

Leão_da_Estrela disse...

Professor,

Sem deixar de estar de acordo com o essencial que VGM escreve, não posso deixar no entanto de lembrar o que contribuiu também para a situação em que estamos; se a memória das pessoas é curta, a dos políticos é assim a modos que de peixe. Não foi este senhor membro de vários governos (Secretário de Estado da Segurança Social -IV Governo Provisório - e dos Retornados - VI Governo Provisório), Comissário de várias exposições, director da RTP e dez anos deputado europeu. Ou seja, até hoje, em que é presidente da fundação Centro Cultural de Belém, desde 1974 que não deixou de mamar na teta do orçamento.

Gabo-lhe no entanto a coragem de assumir-se contra o acordo ortográfico (afinal uma contradição daquilo que defende noutras áreas, mas enfim...) e a qualidade das suas traduções, nomeadamente a da Divina Comédia, que é excelente.

Resumindo, é tão fácil falar de barriga cheia...

Ctos

templario disse...

DE: Cantoneiro da Borda da Estrada

Que chatice!

"Passamos o tempo a falar da crise", o "país mantém-se desconfiado e renitente", "custa-nos acreditar que as coisas possam tornar-se menos duras em tempo útil". É óbvio, tudo isto é "profundamente humano" - a crise "é moral e cultural". O pior, o pior mesmo é "desenvolve-se conscientemente uma estratégia do descrédito das instituições e dos seus responsáveis" (olha quem fala!); as coisas estão mesmo "complicadas", "quer no plano nacional, quer no plano internacional" (a quem o diz!).

Devagar, devagarinho, escrito à borralheira do poder e dos bandos de direita que sempre oprimiram o nosso povo, por onde tem parasitado há muitos anos, o panfletário lá cumpriu o seu dever: defender a canalha!

Toda a lenga lenga do panfleto visa (pois claro!), atacar o PS e a confrontação política, adormentar as consciências e convidar à mais ampla coexistência, entre a "população envelhecida" e "outras camadas etárias", forma deveras original de caraterizar a nossa sociedade, especialmente neste momento.

E assim se leva a vida, assim se retribui...

Eis aqui um excelente exemplar dos nossos letrados, que não largam as tetas da Vaca Nacional, expressando, assim, descontraidamente, as suas preocupações com a "crise".

Está ingrato o "rabisco", não está Dr. Rebelo? O melhor mesmo é isso: ir surrupiá-las aos cestos.