quarta-feira, 11 de maio de 2011

NA IMPRENSA INTERNACIONAL DE REFERÊNCIA


A imprensa informativa, sabêmo-lo bem, já conheceu melhores dias. Vítima da crise e da concorrência, vai perdendo leitores, anunciantes, colaboradores e qualidade. Apesar disso, reage em geral mal e tarde. Quando reage! No panorama internacional há algumas excepções, que convém salientar. É o caso do semanário francês Nouvel Observateur, cuja tiragem tem vindo a aumentar. Neste seu primeiro número da nova série, um dos fundadores, Jean Daniel, assina um editorial que, no meu entendimento, vale a pena ler e meditar. Jean Daniel está agora na casa dos 80 anos, bem vividos.

"AQUILO EM QUE ACREDITO"

"Eis algumas lições que me ficaram dos meus mestres. Com o tempo tornei-me, segundo a expressão de Camus, um "reformista radical". Pratico, como escreveu Michel Foucault, uma "moral do desconforto". Tenho assim a ambição de atingir uma "felicidade sem obrigação de transcendência", como teria podido dizer, segundo penso, Espinosa. Trata-se simplesment de uma ética de esquerda."

1 - Já não quero mudar o mundo, apenas reformá-lo. Creio aliás que o mundo muda por si mesmo mais rapidamente que o nosso desejo de mudar. Mas se quero ser reformista, não é só renunciando à revolução, mas por acreditar nos progressos, e sublinho que escrevi no plural. É fora de dúvidas que já não se pode acreditar no progresso no sentido de Condorcet, de Marx ou de Auguste Comte. Mas antes de a águia lhe ter devorado o fígado, Prometeia conseguiu roubar a Zeus bastantes segredos, alguns dos quais permitiram à humanidade dar saltos enormes no domínio do conhecimento. A reforma consiste agora em fazer desaparecer só aqueles segredos roubados que se revelaram maléficos.
2 - O século anterior devia conduzir-nos a desconfiar de todas as revoluções, a compreender todas as resistências e a adoptar o espírito reformador. Desde que tal conversão se faça com um tal radicalismo, que impeça os compromissos de se transformarem em comprometimentos. O "reformismo radical" exclui qualquer relativismo desencantado. Mendès France dizia que a tensão reformadora deve inocular constantemente o patético na virtude. A democracia deve ser uma paixão.
3 - A explosão dos dogmas e das ideologias deveria condenar-nos à humildade e a um verdadeiro culto da complexidade. Para além das justas da política e do divertimento das polémicas, o peremptório já não é suportável. Resolvi, pela minha parte, interessar-me sempre pelas razões daqueles que estão em desacordo comigo.O meu mestre neste domínio é Raymond Lull, um frade malhorquino do século XIII, que convidava os incréus a nunca escolher um dos três monoteismos, mas a fazer deles a sua própria síntese.
4 - A sageza consiste doravante em nunca separar os conceitos de liberdade e de igualdade. A primeira sem a segunda arrasta-nos para a selva das competições. A igualdade sem a liberdade conduz-nos à uniformidade e à tirania.Nunca separar também a preocupação de criar riquezas, da necessidade da sua repartição. É o homem que continua a ser o objectivo final de qualquer criação.
5 - Nesta conformidade, o dinheiro apenas pode ser o símbolo de uma mercadoria e o instrumento que serve para melhorar a circulação dela. A partir do momento em que a especulação conduz a considerar o dinheiro como um fim e não como um meio, por outras palavras, quando o capital se "financiariza", toda a sociedade se transforma numa gigantesca bolsa de valores, que só pode escolher entre o individualismo cínico ou as quadrilhas organizadas.
6 - Segundo Marx, a violência é provocada pelo salto de uma sociedade para outra, como aconteceu aquando da passagem do feudalismo ao capitalismo. Neste caso e apenas nele, tal violência é por ele considerada como progressista ou, se quisermos, revolucionária. Contrariamente ao que se repete por aí, esta noção não é hegeliana. Hegel elogiou a Revolução [Francesa] (1789), mas não o Terror (1793), tendo visto neste não um progresso mas um retrocesso. Não existe, por conseguinte, qualquer fatalidade progressista da violência. Pelo contrário. Sou adepto de uma não-violência ofensiva e não sacrificial.
7 - Pode, no entanto, existir uma necessidade da guerra, que seja em simultâneo "inevitável e indesculpável", por razões de autodefesa. Mas apenas deverá ocorrer como último recurso, uma vez falhadas todas as outras soluções. Uma vez decidida a guerra, é imperativo ter sempre em conta estes três aspectos: a) "Sim, temos por vezes de nos resignar a fazer a guerra, mas sem nunca esquecer que, apesar da justeza da causa, estamos a participar na eterna loucura dos homens" (Barack Obama); b) De cada vez que um oprimido pega numa arma em nome da justiça, dá um passo no campo da injustiça" (Albert Camus); "A justiça é uma fugitiva que abandona quase sempre o lado vencedor" (Simone Weil).
8 - Não está no destino de uma vítima continuar a sê-lo toda a vida. Uma vez libertada, pode muito bem vir a transformar-se em carrasco. Eis o pensamento que deve acompanhar sempre todos aqueles que aceitam, servindo-se das mesmas armas dos seus inimigos, responder à barbárie pela barbárie, traindo assim os valores em nome dos quais combatem. Neste caso, deixa de haver inocentes. Há apenas vencedores ou cadáveres. Numa época de explosão dos dogmas, em que os conflitos da fé levam aos fanatismos e na qual é cada vez mais difícil falar de universalidade de valores, um ódio deve imperar, e a palavra não é demasiado forte, devemos odiar todos os absolutos. Os sobreviventes de Auschwitz e do Ruanda não devem continuar a proclamar "nunca mais connosco!", mas "nunca mais isto!"
9 - Aprendi desde a infância a considerar a humilhação como um dos piores males da humanidade. Mais do que as opressões, as ocupações e as alienações, é a humilhação que fere mais profundamente a alma de um indivíduo ou de uma colectividade. É a humilhação que está na origem de revoltas controladas, mas também de revoluções fanáticas.
10 - Há várias maneiras de não se instalar no sentido de uma resignação perante as desgraças da vida ou perante a maldição dos homens. Considerar, por exemplo, que "a vida não vale nada, mas nada vale uma vida (Malraux), ou  que "não se deve procurar Deus alhures, porque está por todo o lado" (Gide), e que só uma admiração que se transforma em amor, pode impedir-nos de encarar a vida como "um conto repleto de ruído e de furor, contado por um idiota e sem qualquer significado" (Shakespeare). De qualquer maneira, como escreveu de forma magnífica François Cheng "todas as crenças, todos os cultos e todos os ritos podem desaparecer, menos um único, o da Beleza".

Jean Daniel, Nouvel Observateur, 05/05/2011, página 3
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2 comentários:

Anónimo disse...

"todas as crenças, todos os cultos e todos os ritos podem desaparecer, menos um único, o da Beleza"

Camões também cantou poemas sobre a Beleza eterna.

Anónimo disse...

...e morreu zarolho! (e pobre)