sábado, 6 de dezembro de 2008

TENTAR COMPREENDER A CRISE - 4

António Rebelo
Começando pelo princípio para acabar no fim, como diria o secretário do senhor de La Palice, que , segundo ele, dez minutos antes de morrer ainda estava vivo, convém assinalar unm lapso vocabular. Na parte 3 (texto anterior), onde se lê procura solvável, deve ler-se procura solvente. É assim que grafa o dicionário, e pronto.
Agindo no seio de uma sociedade que, recorde-se, não é de base científica, mas eminentemente pragmática, com todas as vantagens e inconvenientes daí resultantes, os dois citados mastodontes do crédito hipotecário americano, as suas numerosas subsidiárias e os seus concorrentes, foram constrangidos pela sua própria racionalidade e pelas características do universo humano envolvente, como vimos anteriormente, a conceder cada vez mais créditos a quem logicamente os não poderia pagar ou, mais simplesmente, créditos de alto risco. Aparentemente pouco racional, coerente ou lógica, tal política encerrava na verdade uma parte escondida, que é a fundamental, e que só demasiado tarde se verificou estar errada. Consideravam esses tomadores de empréstimos hipotecários que, aumentando continuamente o preço das casas e dos apartamentos, e constituindo as prestações combinadas previamente rendas fixas mensais, ajustáveis ao mercado financeiro, ainda que os devedores não honrassem os seus compromissos, bastaria conseguir ordens de despejo por não pagamento atempado, que são bastante céleres nos USA, e voltar a vender o bem em causa. E assim se foi desenvolvendo o mercado em questão, com operações cada vez mais arriscadas, mas dado que os retornos eram confortáveis, ninguém se procupou com a lógica a coerência ou a racionalidade. Pelo contrário, apareceram até imensas "lojas de crédito fácil", como de resto aconteceu em Portugal, embora com objectivos diferentes. Estas, forçadas pelas circunstâncias, especializaram-se na concessão de empréstimos hipotecários àqueles cujos pedidos haviam sido anteriormente rejeitados por outras instituições. Agiram assim, não por pura filantropia, mas alicerçados numa racionalidade muito própria, como de resto ocorre com frequência mesmo no nosso país.
Quando alguém entra numa instituição bancária para solicitar um empréstimo, esta procura escrutinar o melhor possível a situação real do pretendente e do respectivo património. Em Portugal é coisa relativamente simples, pois existem cartões e dados para tudo, o cliente preenche, ou pede para lhe preencherem, uma quantidade de papéis, paga pelo exame do dossier e aguarda a resposta. Se esta for favorável, vão anunciar-lhe quais as condições do empréstimo. Seguros, fiadores, prestação mensal fixa ou variável, prazo e taxa de juro fixa ou ajustável. Para determinação desta, em função das garantias oferecidas de acordo com o dossier fornecido, quem empresta usa um indexante. No nosso caso é a chamada Euribor, ou taxa interbancária europeia,
o que corresponde ao custo do crédito entre bancos, à qual se acrescenta um spread, constituindo este o ganho do banco. O spread é sempre objecto de negociação, variando consoante a melhor ou menor qualidade das garantias oferecidas pelo cliente.
Nos USA, as coisas acontecem de maneira semelhante, sendo todavia muito mais difícil ter certezas quanto às garantias oferecidas para além do bem hipotecado pois, como se sabe, naquele país os cidadãos não têm bilhete de identidade, nem cartão de contribuinte, nem cartão de eleitor, nem segurança social, nem subsídio de desemprego, nem segurança de emprego. Nestas condições, a teia de vendedores de crédito hipotecário resolveu o problema agravando o spread de acordo com cada situação concreta, mas em proporções muito superiores às praticadas na Europa. O sistema caiu assim numa prática não racional, ilógica, incoerente, ou contraditória, pois quanto menos o cliente podia pagar, mais lhe aumentavam as prestações. A isto se deu a designação de subprime, ou seja, um preço suplementar para além do usual.
Apesar desta anomalia, o sistema prosperou enquanto foi válida a hipótese adoptada à partida, segundo a qual o preço dos alojamentos aumentaria sempre. Quando os devedores não pagavam, aparecia a ordem de despejo e uma nova venda, com o conseguente lucro. O incremento foi de tal monta que os estabelecimentos de crédito se viram confrontados com a falta de liquidez, ou carência de fundos para fazer face à procura. Foi então que apareceu nos USA a ideia milagrosa. Se não havia liquidez suficiente, mas havia procura para taxas de juro muito confortáveis, porque bem acima da média, nada obstava a que se aumentassem os fundos disponíveis, mediante a transformação das hipotecas em títulos negociáveis, com rendimento fixo ou variável, consoante os casos. Foi o sucesso. Venderam-se milhões de activos, tanto nos USA como no Mundo, ainda que ninguém soubesse ao certo o que estava a comprar, aliciado por proventos superiores à média. Infelizmente para quem arriscou, que foram quase todos os grandes fundos e investidores, menos Warren Buffet, o homem mais rico do mundo, que se recusou a comprar tais títulos porque não os percebia, segundo disse, a partir de dada altura, a "bolha imobiliária" que se formara graça ao crédito fácil dos subprimes, rebentou e provocou o descalabro. Com uma atitude em relação ao alojamento muito diferente do sentimentalismo dos europeus, e habituados à falta de estabilidade em tudo, quando verificaram que os preços do mercado eram inferiores ao das casas que estavam a pagar, abandonaram-nas. Incapazes da as voltarem a vender, dada a queda da procura provocada pela expectativa de preços ainda mais baixos, as instituições de crédito começaram a sentir dificuldades, deixaram de honrar os tais títulos de subprime, que passaram desde aí a ser designados por activos tóxicos, por razões óbvias. As ondas de choque sucessivas, resultantes de tal estado de coisas, ainda estão por amainar. Na realidade, ninguém sabe ao certo quais os montantes ou onde se encontram todos esses títulos exóticos, cuja explicação cabal nem os especialistas conseguem dar.
No que nos diz respeito mais directamente, veja-se o comportamento dos principais bancos perante as crises do BPN e do BPP, e face à oferta de aval por parte do governo. Todos garantem a pés juntos que, por acaso, até nem têm activos tóxicos. Mas lá vão manifestando a intenção de beneficiar da garantia governamental. Porque, nestas coisas como no resto, nunca se sabe!
Na próxima intervenção abordar-se-à a crise na Europa e procurar-se-à responder às dúvidas formuladas aqui no blogue, se as houver. Até lá.

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