quinta-feira, 3 de maio de 2012

Sobre o papão neo-liberal

Cuidado com a "estratégia do choque"

"Tudo parece indicar que François Hollande vai ganhar no Domingo. Em todo o caso, uma coisa é desde já certa: após 6 de Maio os mercados financeiros colocar-se-ão em posição de emboscada. Em todos os tons, vamos ouvir a música habitual -"dívida", "rigor", "austeridade". Assim, o melhor é preparar-se desde já para mais esse braço de ferro. Que será agreste. Muito agreste mesmo. Acrescentemos por conseguinte ao processo um aspecto da questão nunca evocado até agora. Falo das privatizações que acompanham -e vão acompanhar- os planos de austeridade impostos pelos mercados.
Os estados soberanos, uma vez arruinados, são encorajados a vender as jóias da família, como forma expedita de resolver os problemas mais prementes. Está a acontecer assim um pouco por todo o lado na Europa. Na Grécia vai ser vendida uma parte do capital de OTE Telekom, líder do sector. Recomendadas pela troika europeia, as privatizações gregas vão incluir também os correios (Hellena Postbank), a companhia ferroviária OSE, bem como os portos do Pireu e de Tessalónica.
Em Espanha, está previsto privatizar os aeroportos de Madrid e Barcelona, tendo a decisão final sido simplesmente "adiada". Na Itália, as privatizações iniciadas em 1995 prosseguem e nalguns casos são mesmo reforçadas. Em Inglaterra, o primeiro-ministro Cameron decidiu privatizar as estradas (!!!) e, aproveitando a embalagem, os correios britânicos.
Por conseguinte, a crise da dívida acelera um movimento que vem coroar o triunfo na Europa do modelo neo-liberal, teorizado nos anos 50  pela "Escola de Chicago", liderada por Milton Friedman (falecido em 2006). São bem conhecidos os ingredientes deste liberalismo integral: redução do peso do Estado, redução de impostos e privatizações. Gabado pelo seu pretenso dinamismo, provoca sempre um acentuado agravamento das desigualdades sociais e o recuo do "estado social". A crise de Setembro de 2008 evidenciou os seus limites, e até a loucura potencial inerente a tal sistema. Que esteja agora a triunfar na Europa, quatro anos após o desastre de 2008, é para mim um enigma.
Pensando melhor, se calhar as coisas nem são assim tão enigmáticas. O acaso levou-me a reler há poucos dias -na versão livro de bolso que acaba de sair- o formidável ensaio de Naomi Klein "A estratégia do choque. A onda do capitalismo do desastre" (Babel Éditions). Uma leitura que me alertou.  Num minucioso inquérito de 850 páginas, a autora canadiana passa em revista muitos exemplos históricos em que foi cinicamente implementada uma "estratégia do choque". Com esta expressão Klein designa e denuncia uma manobra política que consiste em aproveitar a fragilidade de uma população ou de um país em estado de choque, para avançar com reformas neo-liberais, ao estilo de Milton Friedmann.
O primeiro exemplo apresentado é o de Nova Orleães, atingida em Setembro de 2005 pelo Furação Katrina. Três meses após a derrocada dos diques, quando toda a cidade estava ainda azamboada, Friedman publicou um artigo no Wall Street Journal, no qual recomendava que se aproveitasse a catástrofe para transformar o sistema de educação. Propunha privatizar as escolas, transformando-as em "escolas à lista", naturalmente pagas pelos encarregados de educação. O que foi feito. Havia antes do furação 123 escolas públicas; restaram quatro após a "reforma". O estado de choque teve a vantagem de evitar qualquer contestação.
Naomi Klein lembra que já por diversas vezes (no Chile de Pinochet, no Irão e na Indonésia, por exemplo), se utilizou esta mesma estratégia do choque. E nós? E o nosso futuro? Com a ajuda da instrumentalização da dívida pública e a ausência de debate sério, arriscamo-nos a ser as próximas vítimas da mesma vigarice ideológica. Por conseguinte, não basta que a esquerda conquiste o poder. Não pode depois descansar à sombra da bananeira."

Jean-Claude Guillebaud, Nouvel Obs, 02/05/2012, página 21

Nota de leitura de Tomar a dianteira

Manda a verdade acrescentar que até agora o grande inconveniente do modelo neo-liberal, versão Friedman, resulta da sua implementação incompleta. Tal como sucede por exemplo na China Comunista, onde os dirigentes aproveitam as vantagens do partido único e a ausência das liberdades fundamentais, para melhor desenvolverem o modelo capitalista, graças designadamente aos baixos salários, aos horários desumanos e às cadências infernais, também os governantes neo-liberais implementam apenas as medidas que mais lhes convêm para reduzir as despesas e a dívidas pública, mas esquecem-se sempre de baixar o IRS, o IVA, o IMI, o IA ou o IRC.
Daqui resulta um curioso paradoxo fiscal. Ao aumentarem impostos e taxas, os governantes acabam por cobrar cada vez menos, em virtude do velho conceito "demasiado imposto mata o imposto", ao mesmo tempo que provocam recessão, devido à diminuição da procura, como está a acontecer agora na Europa (o que vai para impostos não vai directamente para consumo privado). Inversamente, se em vez de agravamentos houvesse redução de taxas e impostos, a receita do Estado diminuiria num primeiro tempo, acabando contudo por aumentar, devido ao incremento da procura, desencadeado pela redução de impostos. Será assim tão difícil perceber isto?  Trata-se afinal e apenas de mais um exemplo em que o governo julga que se benze e acaba por partir o nariz. Acontece as muito boa gente, que resolve ir à lã e regressa tosquiado...

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