quinta-feira, 16 de maio de 2013

Trabalhar do outro lado da fronteira

"Residem na região de Jura, em França, mas trabalham na Suiça

Grandeza e servidão dos transfronteiriços

Ganham o dobro do que conseguiriam em França, deslocam-se em carros de gama alta, mas madrugam e trabalham 50 horas por semana"

"O que faz o teu pai?", pergunta a professora do primeiro ciclo a uma aluna. "Trabalha na Suiça." Nesta região a Suiça é uma profissão. A Franche-Comté conta 34.400 raianos que trabalham do outro lado, na Suiça. Palavra mágica em Pontarlier e em Morteau: a fronteira para lá da qual se estende o el dorado. Por alguns euros ou alguns cavalos vapor a mais, os raianos transformam-se em exilados temporários.

A zona de Pontarlier. O traço branco na vertical representa a fronteira franco-suiça.

É toda uma vida atravessada pela fronteira. Da família às paixões. O raiano tem uma vida dupla. A sua amante é a Suiça. Maxime trabalha na Suiça, no Vale de Joux,  e tem um diploma em matemática. O diploma é muito importante para os suiços. Só aceitam os melhores alunos. Praticam a imigração selectiva. Como todos os praticantes de adultério, o raiano vive em segredo. Maxime nunca revela qual a marca e o modelo do seu carro, porque o comprou com o que ganha no Vale de Joux, que é superior ao salário médio do lado francês. Sente-se por isso pouco à vontade, com um misto de medo de provocar a hostilidade dos seus compatriotas e um sentimento de culpabilidade, na linha do calvinismo suiço. A sua esposa legítima, a província francesa de Franche-Comté e os que aí ganham salários franceses, em geral 50% inferiores aos suiços, poderia mostrar-se ciumenta e Maxime não quer que o tratem mal quando à noite regressa a casa. É um transfronteiriço, um pendular, designação dada aos que todos os dias atravessam a fronteira nos dois sentidos. Talvez por causa do relógios de cuco, fabricados na região e que têm um pêndulo. Os pendulares são mais numerosos que os hebdomadários, os que conseguem ganhar o suficiente  para pagar o hôtel e as refeições do lado suíço e vir passar só os fins de semana a casa. O pendular gasta cerca de uma hora entre a residência e o local de trabalho, ou até mesmo hora e meia, se trabalha em Lausanne, a maior cidade da região. No inverno a coisa complica-se, por causa da neve, aumentando o tempo de viagem para duas horas em cada sentido. A província francesa de Franche-Comté é o dormitório do arco jurassiano suiço.
Sem uma parte dos seus habitantes durante o dia, Pontarlier e Morteau são cidades meio adormecidas, habitadas por donas de casa com os maridos longe e por reformados para quem a fronteira sempre foi uma miragem. Em Morteau, o centro histórico, com os seus telhados a lembrar os chalés de montanha, lembra uma estação de desportos de inverno fora da estação. Dominada pelo Monte Vouillot, que lhe dá um escapada campestre, a sua rua principal mantém-se tão provinciana e secreta como em 1900. A Rua Louhière também não mudou desde o início do século passado, com os seus velhos prédios carregados de contencioso e de dramas, sobreviventes de uma França que já não existe. A Grande Rue de Pontarlier, agora rua da República, ainda termina na porta abobadada da Place d'Arçon, que recorda as procissões, as entradas dos duques e dos soberanos. Durante muito tempo fechou a Grande Rue contra os perigos exteriores. Agora abre-a para a Suiça, velha amiga e velha inimiga. No Grand Café Français as senhoras de Pontarlier marcam encontro, para passar o dia sem os companheiros. Solidão que só termina à noite quando regressam os Ulisses motorizados, todos orgulhosos nos seus Audis, Mercedes e 4X4 que podiam atravessar toda a África e afinal só atravessam a fronteira. Nada de exageros. Não há engarrafamentos de Ferrari ou de Lamborghini na periferia de Pontarlier, mas todos têm carros de gama alta. O suficiente para provocar a inveja dos compatriotas que escolheram habitar e trabalhar em França, com todas as vantagens e inconvenientes. "É preciso coragem para ser transfronteiriço", diz-nos Jean-Pierre, que trabalha na Suiça na Longines, fabricante de relógios. "Aos que nos invejam só tenho uma coisa a dizer: Façam o mesmo!"
A Suiça e a Franche-Comté são afinal um velho casal. Durante dois séculos os camponeses franceses montaram relógios nas suas quintas por conta dos fabricantes suiços. Era um trabalho suplementar durante o inverno, quando os rendimentos agrícolas eram mais raros. "Chamávam-lhe trabalho de janela, lembra Annie Genevard, presidente da câmara de Morteau, porque necessitava de bastante claridade. Os raianos detinham uma habilidade, um saber-fazer que os suiços não encontravam na sua zona.
A fronteira separa dois sistemas que não se compreendem mutuamente. É verdade que o trabalho é mais violento na Suiça. 50 horas semanais sem pausa para café, despedimento sem justa causa ou aviso prévio, contra respectivamente 35 horas, pausa-café e segurança de emprego em França. Para um francês, a Suiça é assim uma espécie de Far-West, onde é preciso trabalhar no duro e agarrar a sua sorte ao laço. Os transfronteiriços são em geral jovens, menos de 44 anos em média para os homens e menos de 34 anos para as mulheres. Uns e outros têm ares de cow-boys.
Pontarlier e Morteau dependem dos transfronteiriços ou raianos. É algo difícil de perdoar. 34% dos activos de Pontarlier (19 mil habitantes), são transfronteiriços, bem como 20% dos activos de Morteau (6.700 habitantes). Os de Pontarlier trabalham sobretudo na zona de Neuchatel e no Vaudois. Os de Morteau preferem Le Locle e La Chaux-des-Fonds. Trabalham sobretudo nas fábricas de relógios, de microtécnica, fabricação de componentes eléctricos, construção civil, comércio e serviços. Numa região tradicionalista, homens e mulheres mantêm os seus estatutos de origem: homens na indústria, mulheres na saúde e na acção social. O feminismo ainda não chegou a estas bandas. Os transfronteiriços criam o seu próprio espaço. São híbridos: suiços para os franceses; franceses para os suiços.
"Graças aos nossos esforços, o nível de vida aumentou em Pontarlier e Morteau", afirma Maurice, empregado na Audemars-Piguet, fabricante de relógios de luxo. As duas pequenas cidades francesas têm uma actividade comercial comparável à de cidades de 120 ou 130 mil habitantes. Há sinais que não enganam. Na frutaria da Grande Rue de Pontarlier, há uma enorme variedade de frutas e legumes, tal como num mercado parisiense. O transfronteiriço é um cliente refinado e exigente. Em Morteau, a presidente da câmara pode proclamar com orgulho -"E temos 42 cabeleireiros!"
Se do lado francês há o fantasma do transfronteiriço exibicionista, do lado suiço fala-se de raianos que vêm roubar os empregos. "Os 33.400 da região ocupam 6% dos empregos do arco jurassiano suiço, 15% do emprego total no cantão de Jura, 9% no cantão de Neuchatel e 5% no de Vaud", informa-nos Stéphane Andever, do Instituto Nacional de Estatística e dos Estudos Económicos.
Suiços e franceses da região frequentam-se desde há muito e conhecem-se demasiado bem. "Para os suiços, declara-nos Michel, que trabalha na Jaeger-LeCoultre, no Vale de Joux, o francês é um perigoso contestatário, sempre pronto a fazer greve, ou mesmo a revolução, um reles incréu. Aceitam-nos porque precisam de nós, mas estão sempre a vigiar-nos.
Vigiado pelo patrão, o transfronteiriço é temido pelos trabalhadores suiços. É considerado como um concorrente desleal, capaz de aceitar salários inferiores ao salário suiço. Um fura-greves. Invejado em França, suspeito na Suiça, eis a triste sorte do raiano."

François Caviglioli, Nouvel Obs, 09/05/2013, página 51

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