Bertrand Guay/AFP/Le Monde
Googlemaps. Em cima, à esquerda, La Défense, local de trabalho de Florence Hilger. Em baixo, à direita, Sucy-en-Brie, onde mora. A distância entre entre as duas localidades não chega a 50 quilómetros em linha recta. Mas há a travessia de Paris!
Acossados pela crise mas habituados ao nacional facilitismo, os portugueses aceitam mal a acção de um governo de rigor, constrangido pelos credores externos a implementar medidas impopulares. Com o desemprego a aumentar a cada dia que passa, ei-los sem o saberem, regressados aos anos 60 do século passado. Com uma alteração que faz toda a diferença: Há 50 anos iam a salto, que o governo não dava passaportes. Precisava de homens em África e mulher séria não emigrava, se solteira, só podendo sair do país com autorização marital, se casada. Agora praticamente não há fronteira e só não obtém passaporte quem não quer.
Donde uma acentuada tendência para sair do país, levados pelo sonho de conseguir uma vida melhor longe deste ingrato solo pátrio. Mas todo o cuidado é pouco. Lá pela estranja, salvo raras excepções, a situação laboral também não é nada boa e o facto de os portugueses estarem habituados ao facilitismo também não ajuda. Em lado algum as coisas caem do céu, pelo que nunca é demais recomendar "Cuidado com os sonhos!" Para que não se transformem em pesadelos, como infelizmente está a acontecer a cada vez mais compatriotas.
Mesmo com alojamento e emprego, a vida não é nada fácil alhures, quando comparada com a pacatez lusa. Para além da falta de sol e de luminosidade por essa Europa fora, o ritmo de vida é outro, bem mais stressante. Segue-se um exemplo eloquente, contado na primeira pessoa, por uma francesa casada e mãe de família, que trabalha e reside na chamada Região Parisiense (ver mapa).
"Florence Hilger, uma moradora em Sucy-en-Brie (Val-de-Marne), passageira usual do RER A (uma das linhas do metropolitano expresso regional da região parisiense), descreve no seu blog "Terminus pavilhão", o périplo para ir do seu trabalho , em La Défense, até a casa, no dia 9 de Janeiro, quando houve mais uma "avaria de material".
"Saí do escritório às 18H20 indo a pé e em bom ritmo até à estação do RER La Défense. Tencionava ir ter com o meu mais novo, para assistir à sua aula de flauta, às 19H30 no conservatório. 18H30: Chegada aos torniquetes do metro, vejo gente por todo o lado. Olho para o painel electrónico, totalmente amarelo. Mau sinal! Avaria de material entre La Défense e Charles De Gaulle - Étoile. Não há comboios. Previsão de retoma do serviço: 19H30.
Penso um bocadinho, decido-me pela linha 1 do metropolitano e tento aproximar-me da entrada. Impossível. Um mar de gente teve a mesma ideia que eu. Portas automáticas bloqueadas e entradas vigiadas. Uma colega enviou-me um SMS para me prevenir que valia mais aguardar no escritório. Tarde demais!
Primeira coisa a fazer, antes de decidir como regressar: implementar o Plano B. Envio um SMS a um dos meus filhos, prevenindo que não há hipótese nenhuma de chegar a horas... Que vá buscar o irmão ao conservatório. Outro SMS para o meu marido, que já está em casa.
A linha para Saint-Lazare é assaltada pelos passageiros que vão na direcção de Cergy e Poissy. Nem vale a pena tentar ir por aí! Os "coletes fluorescentes" são muitos, mas nenhum nos sabe dizer como sair dali. Não estão informados. Nas informações, uma senhora amável fechou o guichet e tenta socorrer os passageiros perdidos e amedrontados. Dá-lhes plantas da rede de autocarros.
Que fazer? Os passageiros não sabem como sair deste enclave. Vê-se a angústia em cada rosto. Nem quero imaginar o que seria se houvesse mesmo uma verdadeira catástrofe! Sigo o movimento e resolvo apanhar um autocarro na direcção de Paris. Vou caminhando e procurando o 73. Passa um, mas em sentido contrário. Finalmente lá consigo encontrar a paragem, também com uma multidão, mas menor que na linha 1.
19H10: Chega o autocarro. Consigo subir. Viajamos apertados como sardinhas enlatadas. Muito desconfortável, mas há que aguentar. Próximo objectivo:metro, linha 8, Concorde. 19H32: Porte Maillot. Em cada paragem um estranho ballet: saem dois, entram quatro ou cinco. Felizmente que ainda não tiraram as iluminações de Natal! Paris é mesmo uma cidade maravilhosa! 19H42: Lá consegui um lugar sentado e à janela. Consigo ver melhor as cores do Arco do Triunfo iluminado. Começamos a descer os Campos Elísios... 20H00: Deixo o 73 e vou até ao cais do metro, linha 8, direcção Créteil-Pointe-du-Lac. Encontro uma conhecida que saiu da estação RER La Défense às 17 horas. Safa! Sempre tive mais sorte! 20H04: Entro no metro. Não me sinto sozinha. Há montes de gente. Vou-me deslocando pouco a pouco para próximo dos lugares sentados, na ponta da carruagem. Na estação seguinte tive sorte: sentei-me. 20H07: estação Ópera. Paragem para acerto de horário. Partida às 20H10. Como ainda tenho tempo, aproveito para ler. Em Richelieu-Druot mais uma paragem técnica para acerto.
Resolvo enviar SMS aos meus para obter informações. Não respondem. Resolvo descer em Créteil-Université e apanhar o autocarro Trans-Val-de-Marne. Entretanto mais uma paragem técnica na estação République, "para acerto, devido a uma pequena avaria". Assisto ao desfalecimento da minha única ligação com a família: a bateria do telemóvel vai enfraquecendo a olhos vistos. Enervo-me: o meu filho Alex não me responde e os outros também não. Após alguns minutos que me pareceram horas, chegam os SMS, uns a seguir aos outros. Dão-me outra solução: apanhar o 393 no topo da linha 8.
20H30: Chego a Reuilly-Diderot. Ainda me faltam 14 estações. Posso continuar a ler. Uma obra interessante, sobre o sexto sentido...Devia ter acabado a leitura esta manhã, que agora já me teria servido. 20H57: Créteil-Préfecture; só falta mais uma estação. O metro vai ficando vazio. Arrumo o livro. A curiosidade do início da viagem vai dando lugar à fadiga e ao desinteresse. Tenho sorte,. O tal 393 parece estar mesmo à minha espera, logo à saída do metro Pointe-du-Lac. 20H12: Chegada a Sucy-en-Brie. Desço do autocarro. Estou com fome. Caminho solitária pelo subterrâneo da estação que... Mensagem da RATP (equivalente parisiense do Metropolitano de Lisboa): "Circulação interrompida entre Charles-de-Gaulle-Étoile et La Défense. Normalização prevista para as 21H30." Já tinha ouvido isto quando iniciei a viagem, mas nessa altura falavam da retoma às 19H30! Caminho durante mais sete minutos e meto-me no carro. Chego à porta de casa às 21H30. E julgo que até tive sorte! As crianças ainda não se deitaram. Ainda lhes posso falar antes de irem para a cama. Janto rapidamente. Mesmo assim ainda vou ver os trabalhos de casa do mais novo.
E pronto, é tudo por hoje. Amanhã é outro dia. Despertar às 6 e recomeçar tudo com alegria!"
Dados recolhidos por Benoît Hopquin, Le Monde, 08/03/2012
Uma vida de sonho, não é? Até parece que vivem em Portugal!
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