terça-feira, 7 de maio de 2013

Crónica dos novos tempos



"O meu pai -esse sortudo efectivo"

"Desta vez, David desenrascou quatro meses na Peugeot! Nem quer acreditar"

"O local de encontro é no parque de estacionamento de um restaurante de comida rápida, à entrada de Montbéliard, perto dos portões da fábrica Peugeot. Cerca de vinte pessoas esperam pelo autocarro que os vai conduzir às oficinas da primeira equipa. No céu frio estendem-se nuvens negras e cor de rosa. Devem ser quatro e meia da manhã.
Como de costume, David impacienta-se. "É sempre assim! O autocarro vai chegar atrasado e depois vão dizer que a culpa é nossa". É um jovem, com um unicórnio tatuado no braço, uma lata de cerveja na mão e duas covinhas em cada bochecha. Já trabalhou em restaurantes, em jardinagem, numa fábrica de contraplacado e na selecção de cerejas. Desta vez desenrascou Peugeot, ou mais precisamente um emprego de quatro meses na linha de montagem, por intermédio de uma empresa de trabalho temporário, que recruta para um subcontratante, que por sua vez trabalha para a Peugeot. Peugeot! Repete a palavra, surpreendido pela sua sorte. O pai de David também trabalha na Peugeot desde antes de ele ter nascido. Agora vai ficar na mesma linha de montagem. Pai e filho e lado a lado, mas separados por um abismo: o contrato de trabalho. "O meu pai é um efectivo", diz-nos David. "Os nossos velhotes são todos efectivos", confirma um outro jovem loiro, com voz forte para compensar a música do seu telemóvel. Fica admirado por não conhecerem a palavra: "Quer dizer que têm um contrato de trabalho de duração indeterminada -CDI".
São todos temporários e jovens, menos um, alto e magro, que deve andar à volta dos cinquenta anos. Riem-se, sem inveja, mas antes com visível ternura pelos seus pais, de que falam como se fossem eles as crianças, criaturas inocentes a necessitar de protecção num mundo em mutação. Um deles desabafa: "Conseguem imaginar os nossos pais desempregados, como nós?" Gargalhadas. E o loiro prossegue, altaneiro: "Não se aguentavam".
O contrato de trabalho transformou-se na unidade de valor e o CDI no valor supremo. Dois terços dos inscritos nos centros de emprego já não pedem um ofício mas um CDI. Para os empresários é exactamente o contrário. 49% das ofertas de emprego são para temporários e outros 30% são CDD - Contrato de duração determinada. A explosão data do ínício deste século, quando as empresas começaram a gerir as variações de produção recorrendo a um "colchão de temporários" -a designação é oficial. Na Peugeot, em Montbéliard, um em cada três empregados é um precário. É assim por todo o lado, por vezes até pior. "É claro que me preocupa, diz Marine, que dirige o pessoal de uma das linhas de montagem. Mas já não lutamos para aceitar ou não aceitar. Tenta-se fazer o melhor possível, e pronto."
No parque de estacionamento, David bebe mais um trago de cerveja. "Nunca pensei que a linha de montagem me agradasse tanto. É o paraíso." Os telemóveis indicam 4H45. O loiro aproveita para pôr gel no cabelo. "Achas que nos vão efectivar, na Peugeot?" Quando chegaram pela primeira vez, um chefe disse-lhes que iam ficar só durante algum tempo. Mas eles pensam que não. Circula o rumor de que alguns temporários conseguiram efectivar o ano passado. Acreditam nisso. "É estúpido como o Euromilhões, mas um gajo pensa porque não eu?" sentencia um baixote, com um blusão tipo James Bond, que aproveita para enumerar os seus trunfos: "Tenho boa fronha e os chefes gostam de mim. Há que estar bem visto quando se é ambicioso."
São todos trabalhadores temporários na família do "James Bond", menos o pai, claro. Aqui há tempos falaram no assunto durante uma refeição em casa. O pai disse: "Temos de encarar sem rodeios o que se está a passar: que patrão pode dizer como estará o seu caderno de encomendas dentro de seis meses? É triste, mas se tem de ser assim para salvar o que resta..." Todos gozaram com ele. "O que é que te deu, pai? Falas como a televisão." Mas logo a mãe: "Não é vergonha nenhuma. Muita gente tem os filhos desempregados ou com empregos precários, mesmo engenheiros."
Regra geral, para manter a motivação até ao fim, sabe-se na sexta-feira que a partir da segunda-feira seguinte o contrato não será renovado e aguarda-se a última hora para entregar um certificado de "bom serviço", indispensável para nova colocação temporária. Foi o que aconteceu com o irmão de David. Já no fim, o chefe esclareceu-lhe: "Não és despedido. Mandar embora um precário, não é despedir". Mesmo assim, o irmão de David percorreu a linha de montagem desejando não encontrar ninguém conhecido. Não teria coragem para lhe dizer Adeus. Tinha a impressão de ali trabalhar há anos. Já cá fora veio-lhe uma irresistível vontade de chorar.
O loiro mudou de assunto, opinando que não serve de nada lamentar-se. Os da CGT vieram falar-lhe dos seus direitos como trabalhador. Achou simpático. Mas só acredita numa coisa: o dinheiro. Com os três primeiros ordenados tenciona comprar uma scooter "porque mais potente vai ser difícil". Um sol pálido aparece lentamente por cima do restaurante, enquanto o vento vai levando as batatas fritas abandonadas pelo chão.
O autocarro dos efectivos já está à porta da fábrica. Num dos primeiros bancos um operário mete uma lancheira no saco. Em 1975, quando o contrataram, "o termo operário na cadeia de montagem era sinónimo de "escravo moderno". Agora acham-nos privilegiados. Acabou por acreditar nisso. "O que para nós era uma fatalidade, é agora o sonho dos nossos filhos". O filho está pouco mais atrás, no parque de estacionamento do restaurante de comida rápida. Entra no autocarro dos temporários ou precários, fazendo tal como os outros o V da vitória, enquanto o loiro filma a cena com o seu telemóvel. São 4H58 quando o autocarro arranca, espalhando raios prateados das poças de água das trovoadas.

Florence Aubenas, Le Monde, 06/05/2013, página 19. aubenas@lemonde.fr

Mudança? Outra política? Mudar de rumo? Há outro caminho? Que se lixe a troika? Derrubar o governo? Com toda a clareza?