sábado, 14 de julho de 2012

Saia um pastelão para a mesa do canto!

É o tipo de peça política que nunca traduziria, porque demasiado longa e enfadonha. Acontece porém, que as reacções de Luís Ferreira e de Leão da Estrela ao post Lá como cá me levaram a confirmar uma suspeita antiga. A de que muitas vezes interpretamos mal certos textos, devido à ignorância contextual. Ou seja, quando aqui se publica qualquer tradução, os leitores portugueses não dispõem de informação complementar envolvente semelhante à de quem vive na respectiva realidade social quotidiana. Procurando ultrapassar de alguma maneira tal inconveniente, segue-se uma análise política detalhada da presente situação francesa, já com um presidente da república, um governo e uma maioria absoluta do Partido Socialista. 
O original é do NOUVEL OBSERVATEUR, a revista semanal de informação, de tendência pró-socialista, fundada por Jean Daniel, grande amigo de Mário Soares, que continua a lê-la semanalmente, o que explica certas intervenções recentes...

"O governo começa a cortar a direito!

Afinal esta austeridade é nome de quê?

Antes mesmo da prova oral do primeiro-ministro, na próxima terça-feira na AN, todos os ministros foram intimados a apertar o cinto. "Mesmo correndo o risco de destabilizar uma parte da esquerda, que esperava mais uma reedição de 1981 [eleição de Mitterand] do que a ressurreição de Mendès France" [primeiro-ministro socialista francês, nos anos 50 do século passado, conhecido pela sua política económica austera].

" Nunca usar a palavra "austeridade". Preferir "medidas socialmente justas". Não falar de "redução de lugares na função pública", mas de "estabilidade global dos efectivos". Não mencionar a "redução das despesas públicas". Ficar-se por "congelamento em termos de valor global". A política orçamental à moda de Hollande continua a ser um exercício de gincana linguística. Apesar disso, que trovoada no céu deste Verão! Ministros forçados a reduzir custos, auditoria implacável do Tribunal de Contas e discurso de política geral pelo austero primeiro-ministro Ayrault. O duo executivo fala alto e sem piedade.
A mensagem dirigida aos franceses que vão de férias em Julho e Agosto é clara: No regresso, esperam-vos  sacrifícios e mais sacrifícios. Beijinhos do PR e do PM! Trata-se apenas de mais um aperto de cinto, como denuncia a direita, que contesta o encadeamento demagógico entre os presentes de inauguração -aumento do abono de abertura das aulas, reforma aos 60 para carreiras longas, pequeno aumento do salário mínimo...- bem como a avalanche de medidas drásticas logo após as legislativas? Ou pelo contrário, é questão de "austeridade justa", como sustenta uma parte da opinião pública de esquerda? "A minha folha de estrada é o projecto do PR, que é claro, preciso, estudado e quantificado. É o realismo de esquerda", repete o primeiro-ministro. 
Forçoso é constatar que Jean-Marc Ayrault, em relação a quem o Mauroy de 1983 [primeiro-ministro de Mitterand] não passa de um poeta sonhador, respeita integralmente o evangelho holandista. Na lista dos 60 compromissos perante os franceses, o PR acaba de pôr uma cruz no número 9 -"Restabelecerei o equilíbrio orçamental até ao final do mandato"- e o número 10 -"Acabarei com a aplicação automática do princípio de não-substituição de um funcionário em cada dois"- É assim e não se fala mais no assunto.
Os que julgavam votar numa reincarnação do Mitterand de 1981, descobrem afinal um Mendès-France de síntese. "A República não é o aumento infinito da despesa pública. É um Estado com estratégia, eficaz e poupado", escreveu Hollande no seu livro de campanha "Mudar de destino", agora disponível em  edição livro de bolso.
Para reduzir o défice público para 4,5% já este ano e conseguir arrecadar mais oito mil milhões de euros de receitas, o Estado vai solicitar os mais ricos (restabelecimento da tabela do Imposto sobre a Fortuna e do Imposto sucessório), os rendimentos do capital e as empresas antes favorecidas por Sarkozy (fim da exoneração dos descontos sobre as horas extraordinárias, imposto sobre os dividendos, sobre o petróleo e sobre os bancos). Mas trata-se apenas de um primeiro aquecimento. Para conseguir os 3% de défice em 2013, Didier Migaud, presidente do Tribunal de Contas, julga que serão necessários mais 33 mil milhões de euros, provenientes sobretudo da "grande reforma fiscal", anunciada para Setembro.
Mas Migaud não vê como é que o Estado poderá evitar a médio prazo o congelamento dos salários na função pública e o aumento do imposto de solidariedade...ou mesmo do IVA! Isto numa altura em que o governo vai acabar com o "IVA social" de Sarkozy e se declara contrário a qualquer aumento de impostos sobre o consumo..."Se a memória não me atraiçoa, não faz parte do programa de Hollande", responde Jérôme Cahuzac, o ministro do orçamento.
No relatório final da citada auditoria do Tribunal de Contas, tudo indica que a cura de emagrecimento do Estado está apenas no princípio. Segundo a mesma fonte, começara em 2011.
À volta da mesa do conselho de ministros notam-se já os semblantes carregados Os membros do governo, que previamente se auto-infligiram um redução de 30% nos ordenados, vão agora ser obrigados a levar a cabo uma impiedosa caça ao desperdício em todas as administrações. Durante uma reunião de preparação, no passado dia 25, o primeiro-ministro entregou a cada um dos 38 ministros uma "carta de enquadramento". A dita missiva urbi et orbi veio mesmo a tempo de acalmar os mercados financeiros, provando a boa vontade da nova equipa francesa perante os nossos parceiros europeus, com a senhora Merkel à cabeça. No entanto, a perspectiva de reenquadrar o emprego na função pública do Estado -2 em cada três saídas não serão substituídas até 2015, excepto na educação, nas forças de segurança e na justiça- reduzindo ao mesmo tempo em 7% as despesas de funcionamento, provoca pesadelos em todos os membros do governo.
Segundo uma testemunha, "só Le Foll (agricultura), Lebranchu (função pública), Sapin (trabalho) e Duflot (habitação) arriscaram dizer que vai ser muito difícil cumprir as promessas da esquerda em tais condições". Pudera! São as pastas mais atingidas. Após quatro anos em que os funcionários aposentados não foram susbstituídos, alguns ministros não estão a ver como poderão reduzir ainda mais. É o caso de Laurent Fabius, por exemplo, e da sua rede diplomática. Mas por agora silêncio!

Silvain Courage, com Serviço Político, NOUVELOBS, 05/07/2012, páginas 12/13

Continua no próximo post.


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