quinta-feira, 19 de março de 2009

OS AUTARCAS, O MILAGRE E OS ELEITORES

Aconteceu há tempos, numa cidade pequena e excessivamente pacata, com um rio de margens magníficas e um convento património da humanidade. O seu alcaide, cansado de tanta crítica e tendo em vista as eleições que se iam seguir, falou com os seus confrades, da sua cor e da oposição, e foi rezar a um conhecido santuário situado a cerca de 35 quilómetros.
Murmurava ele que os seus administrados eram gente muito difícil, invejosa, extremamente exigente com os outros, mas de total condescendência consigo próprios. Muito a propósito, um deles, dirigente oposicionista, escreveu que "Temos fugido assim da realidade, culpando sucessivamente todos os governos pelos males que são da nossa responsabilidade, especialmente porque a escolha da câmara só depende de nós..." Na mesma linha, continuou, têm uma tendência doentia para reparar unicamente nos detalhes de quase nula importância, em detrimento do essencial. Se, por exemplo, se veste uma camisa cara e do último modelo em voga, logo dirão que os botões são feios e que não dá a bota com a perdigota. Um anónimo saiu-se mesmo um dia destes com uma apreciação pelo menos peculiar -"...é um homem delicado, culto, sensível e que percebe de turismo cultural a potes. Só é pena não saber trabalhar com o Excel..."
Prosseguiu o nosso autarca a sua oração, afirmando desconhecer se alguém terá entendido a relação entre o Excel e o turismo cultural. Depois rematou com a triste situação que se vive neste ano de eleições. Não só os eleitores acham que estamos a governar mal, como afirmam que somos todos boas pessoas, mas não passamos disso mesmo, pelo que não tencionam votar em nenhum dos actuais membros do executuivo. Quando já se ia a levantar para regressar ao exercício das suas funções, ouviu uma voz feminina, profunda e maviosa, que lhe perguntou: -E que querias tu afinal, irmão? Posso ser-te de algum conforto moral? Dar-te coragem para prosseguires na tua tarefa de pastor laico?
Fortemente surpreendido, o autarca peregrino replicou a medo: -Não sei se seria possível um milagre, mesmo modesto, porque aquela terra e aquela gente chegaram a uma situação tal que só algo de extraordinário poderá reverter. -Sê mais concreto irmão; o que murmuras é demasiado vago. Assim não vamos lá... -O ideal seria mudar-lhes o feito, rematou o alcaide. -Isso não, de modo nenhum. São muitos e são livres, que o Criador deu a cada um à nascença o livre-arbítrio, e depois convém separar aquilo que é de Deus daquilo que é de César. Alterar o feitio das pessoas não seria minimamente ético. Agora se te puder valer com algo de mais singelo, conta comigo. O autarca ganhou alento e ousou: - O ideal era que eu conseguisse andar sobre as águas. Os eleitores ficariam tão surpreendidos que a partir daí não teriam outro remédio senão respeitar-me. Para seu grande pasmo, foi-lhe respondido que era possível, com duas pequenas condições -escolher a ocasião para tal milagre e alargar essa faculdade da flutuação aos restantes membros do executivo, por uma questão de estrita equidade e para evitar críticas, que a Igreja não tem partido, como se sabe.
Tudo devidamente ponderado, a autarquia decidiu organizar uma grande festa, comemorativa já ninguém se lembra de quê, no largo do mercado local, que dá para o rio, agora um largo plano de água, graças ao açude financiado pelo programa Polis. Foi levantada uma tribuna para as entidades oficiais e erguidas bancadas para o público em geral. Na véspera, o nosso autarca sortudo rumou de novo ao santuário. Aí deu conta, orando, do que estava previsto, ou seja, antes de iniciar as festividades, já com as outras autoridades na tribuna e o numeroso público nas bancadas, os autarcas chegariam à outra margem do rio, onde fizeram aquele horrível paredão. Naquele intervalo entre o paredão e a ponte recém-construída começariam a marcha triunfal até à tribuna, caminhando sobre as águas do rio. -Podem contar com isso! Mas olhem que é só desta vez! Os pedidos são cada vez mais e temos de distribuir o bem um pouco por todo o lado. E então este ano, com a crise...
À hora aprazada, com a tribuna e as bancadas completamente lotadas, ao som da Marcha Triunfal, as lustrosas viaturas de função deixaram os sete autarcas na margem fronteira. Ufanos, impecáveis nas suas encadernações de circunstância, olharam em volta e meteram o pé à água, com bastante receio, diga-se em abono da verdade. Mas tudo bem. A água era como se fosse terra firme, e lá iniciaram o percurso dos heróis até à tribuna.
Ultrapassada a natural estupefacção, iam os nossos autarcas todos impantes sensivelmente a meio do rio, romperam os gritos, às centenas -"Olha os gajos nem sequer sabem nadar, quanto mais agora governar!" "Vão mas é aprender a nadar primeiro!" "Aldrabões! Julgam que a gente não sabe que mandaram congelar a água primeiro?" "Vão enganar outros!"
Envergonhados, os eleitos prosseguiram até aos respectivos lugares na tribuna, mandaram abreviar o mais possível as actividades previstas, após o que regressaram a penates, meditando que nesta terra é tudo tão complicado que já nem com milagres nos salvamos...
(As citações foram tiradas de blogues. Uma é de Luis Ferreira (Temos fugido assim da realidade...) . A outra, a do turismo cultural e do Excel, é de um anónimo).

2 comentários:

Anónimo disse...

Comparar um qualquer anónimo ao pintas do Adjunto, é como comparar a Santa da Ladeira com a Senhora de Fátima.

Benza-os Deus!

Sebastião Barros disse...

É provável! Mas nunca foi essa a nossa intenção!