quarta-feira, 4 de novembro de 2009

DISSABORES DA MARCA BARCELONA

Torres da Sagrada Família em Barcelona. Foto Josep Lago/AFP/Público


"Jordi Hereu, Presidente da Câmara de Barcelona, protestou a semana passada, no encerramento da Universidade de Outono do Partido Socialista Catalão, contra "a campanha de descrédito" da qual estará a ser vítima a capital da Catalunha.Sem identificar os agressores, o autarca denunciou "aqueles que lançam bombas de desilusão maciça contra a cidade".
Apre ! A acusação é enorme. Quem terá a lata de atacar a imagem tão positiva e dinâmica de Barcelona ? Uma "marca" aperfeiçoada desde há duas décadas, recorrendo às mais aperfeiçoadas técnicas do "marketing" internacional ?
Apenas algumas raras vozes isoladas prostestaram nos últimos anos, para matizar a euforia e sublinhar o desfasamento entre o mito veiculado no exterior e a realidade vivida pela população. O antropólogo Manuel Delgado, por exemplo, interroga-se no seu ensaio sobre "La ciudad mentirosa" (Ed. La Catarata), acerca "da falácia e da miséria do modelo Barcelona". Por sua vez, Joan Ramon Resina, professor de literatura e de cultura hispânica na Universidade de Stanford (USA), analisou em 2008 "o progresso e o declínio de uma imagem urbana", no seu livro intitulado "La vocacio de modernitat de Barcelona" (Ed. Galaxia Gutenberg).
É claro que nos bairros populares de Poblenou ou de Sants, ninguém leu estas obras eruditas, mas desde o fim do verão os barceloneses não perdem as sucessivas manchetes da imprensa local, que lhes falam igualmente de falácia, de miséria e de decadência. Barcelona está desencantada porque a actualidade lhe recorda o risco evocado pelos dois intelectuais de se assister "à morte da cidade, vítima do seu próprio sucesso", após ter sido promovida como "um produto de consumo".
O primeiro escândalo ocorreu em setembro, com a publicação pelo jornal EL PAÍS de fotografias-choque, nas quais apareciam dois homens, com as calças e os slips pelos artelhos, em plena actividade sexual com duas prostitutas, no meio da rua (A "ourivesaria sexual", em português do Cais do Sodré. Nota do tradutor). Não num recanto obscuro de um qualquer longínquo arrabalde, mas debaixo dos arcos do muito turístico mercado de La Boqueria, ao longo da Rambla, em pleno centro da cidade.
A onda de choque deste "furo jornalístico" ainda continua a expandir-se, alterando as ideias feitas sobre a Rambla, um eixo urbano de um quilómetro e meio, pelo qual transitam anualmente 78 milhões de pessoas, metade das quais turistas. Pois foi aí, nas ruas adjacentes do Raval que se instalaram as mafias da prostituição. E foi também aí, no bairro central da Ciutat Vella, que foi recenceada a maior parte dos 8o mil roubos por esticão declarados em 2008.
Até há pouco tempo emblema de Barcelona, a capital da vida alegre e da juventude, a Rambla é agora, segundo LA VANGUARDIA, "o paradigma dos efeitos nocivos de um certo tipo de sucesso urbano ligado à vida-espectáculo".
O mesmo jornal lamenta "a debandada da população local desse espaço público", vítima do turismo de massa e da degradação urbana que provoca. Perante o descrédito, a imprensa local apela à mobilização, designadamente das instituições culturais, para criar (estava-se mesmo a ver) "uma marca Rambla". Por seu lado, o presidente da câmara interpela os desencantados: "Que venham à Ciutat Vella ver o combate que estamos a travar para a salvar e transformar num exemplo de centro histórico reabililitado."
Porém, se basta arregaçar as mangas para reparar os estragos colaterais de um turismo excessivo, os atentados à imagem de Barcelona são bem mais graves quando provêm do seu próprio seio.
Foi o segundo grande estrondo do outono. Um escândalo que abalou o Palácio da Música Catalã, um teatro da arte coral que, além de Património da Humanidade, é um monumento ao orgulho catalão. A recente prisão preventiva do seu presidente, Félix Millet, acusado de ter desviado mais de dez milhões de euros das obras de reabilitação da sua sede modernista, entristeceu os barceloneses.
A instituição, que vive em grande parte de subsídios públicos, de doações e de peditórios, está assim no âmago de delitos que ultrapassam a simples crónica. Não só um descendente dos fundadores meteu a mão na caixa em proveito próprio, como "contemplou" generosamente alguns amigos da boa sociedade barcelonesa, particularmente o Partido Convergência e União (direita nacionalista), deixando adivinhar um bem oleado sistema de subvenções em regime de "toma lá-dá cá".
O sentimento de mal estar aumentou ainda mais por estes dias, com a detenção a requerimento do juíz Baltazar Garzon de oito dirigentes políticos, empreiteiros e altos funcionários da Catalunha, no âmbito de um vasto caso de corrupção ligada à construção. Alguns eleitos do Partido Socialista Catalão estão na mira do magistrado, tal como antigos titulares do governo Convergência e União, de Jordi Pujol. Esta "pesca transversal", segundo a imprensa local, vem confirmar que Barcelona e a sua região não estão imunizadas contra a epidemia de corrupção que atinge toda a Espanha. Agora é oficial: a corrupção atravessou as fronteiras daquilo que as elites locais definiram durante muito tempo como "o oásis catalão".

Lettre d'Espagne, Jean-Jacques Bozonnet, Le Monde, 03/11/09
Tradução e adaptação de António Rebelo

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