domingo, 29 de novembro de 2009

MENTIRA ROMÂNTICA E VERDADE ROMANCEADA

Nos anos setenta do século passado, um ensaio do filósofo René Girard, francês a residir e ensinar na Califórnia, fez algum "barulho" em França. Tinha por título "Mentira romântica e verdade romanceada". Ao longo de mais de 200 páginas o autor analisava algumas das grandes obras da literatura universal, de D. Quixote aos Irmãos Karamazov. Concluía, avançando dois aspectos fundamentais da literatura: 1 - Em todas as obras-primas a personagem principal arrepende-se sempre no fim; 2 - Cada autor literário tem inteira liberdade para compôr as personagens (mentira romântica), mas depois é sempre constrangido a escrever de acordo com a realidade, mesmo a ficcionada, em virtude da necessidade de verosimilhança (verdade romanceada), para que haja coerência.
Lembrei-me disto durante uma recente troca de impressões com um autarca da região, de quem sou amigo há muitos anos. Não interessa o seu nome, pois não se trata de acusar. Apenas de tentar levar a pensar, a encarar outras hipóteses, outras formas de actuação, outros caminhos com mais futuro.
Dizia-me ele que as coisas estão estruturadas de tal forma, que praticamente forçam os responsáveis autárquicos a empolar as receitas. De outro modo, nunca viriam a ter capacidade legal para candidatar os projectos mais importantes. Nunca haveria "cabimentação orçamental", para usar o jargão autárquico. Temos portanto que praticamente todos os autarcas mentem, e sabem que mentem, em prol do futuro concelhio. É a mentira romântica. Que esteve na origem da queda da União Soviética e dos regimes dos países dela dependentes. (E segundo parece a China vai pelo mesmo caminho. Uma vez que os responsáveis pelos diferentes sectores nacionais e regionais são avaliados em função dos resultados conseguidos, já há casos de quatro auto-estradas paralelas, podendo todos os resultados estatísticos reflectir apenas a vontade do partido comunista e não a realidade económica).
Neste momento, de acordo com as melhores fontes, a dívida total da autarquia tomarense estará entre os 38 e os 39 milhões de euros, números redondos. Os cidadãos ouvem ou lêem isto e passam adiante, ou limitam-se a encolher os ombros. Contudo, se escrevermos que 39 milhões de euros representam uma dívida de um pouco mais de mil euros por cada eleitor; se acrescentarmos que um em cada três eleitores não paga impostos; se esclarecermos que as despesas permanentes da autarquia têm tendência para aumentar fortemente, enquanto os eleitores, e logo as receitas, têm tendência a diminuir fortemente, as coisas mudam de figura. É a verdade romanceada.
Entre mentira romântica e verdade romanceada, é meu entendimento que, mais tarde ou mais cedo, os nossos autarcas e todos os outros vão ter de regressar à verdade societal, à ordem inicial das coisas, à hoje desdenhada "contabilidade de merceeiro". Serão mesmo obrigados a isso. Por Lisboa ou por Bruxelas. Ou por ambos. Veja-se o caso João Jardim, que já esperneia por todos os lados, em vão. O dinheiro não estica.
A verdade societal e a ordem inicial das coisas implicavam que os fundos da União Europeia viriam ajudar-nos a realizar os nossos projectos de interesse comunitário, eventualmente "nas gavetas" por falta de recursos.
Com o tempo, foram alteradas as prioridades. Desde há anos que já não se trata de adjuvantes para projectos existentes, mas de projectos elaborados "em cima do joelho" e sobre-avaliados, para conseguir sacar os fundos europeus, que oficialmente apenas cobrem uma determinada percentagem do custo total, mas acabam pagando tudo, em virtude da tal sobre-avaliação. Bruxelas sabe isto, mas cala-se. Aguarda a sua hora.
Não espanta portanto que já haja em Portugal duas auto-estradas paralelas (A 1 e A 8), e que se encare já a conbstrução de uma terceira ( IC 3)...ou a limpeza/lavagem da Janela do Capítulo e anexos a jacto de areia. O importante, para autarcas, empreiteiros e forças partidárias no poder, não são as obras nem a sua eventual utilidade social. O IMPORTANTE SÃO OS FUNDOS EUROPEUS, NESTE MOMENTO NO QREN, BEM COMO OS COMPROMISSOS QUE NÃO CONSTAM DE NENHUM DOCUMENTO. "Et pour cause...", diriam os franceses, que continuam a ser os pais da diplomacia.
Resta aos autarcas tomarenses (que com as asneiras dos outros passamos nós muito bem) arranjar coragem para encarar e aceitar a realidade local e nacional como ela é. O que implica encontrar maneira de aumentar as receitas e diminuir as despesas. Não é nada fácil, mas também não é impossível. Quanto mais tarde, pior maré !

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