quarta-feira, 2 de novembro de 2011

"Este povo não presta!"

"Acabava de entrar o ano de 1872. E o novo ano que chegava interrogava o ano velho. "Fale-me agora do povo", pedia o ano novo. E o velho: "-É um boi que em Portugal se julga um animal muito livre, porque lhe não montam na anca; e o desgraçado não se lembra da canga!" -"Mas esse povo nunca se revolta?", insistia o ano novo, espantado. E respondia o velho: "-O povo às vezes tem-se revoltado por conta alheia. Por conta própria, nunca". E  uma derradeira questão: "- Em resumo, qual é a sua opinião sobre Portugal?" E a resposta lapidar do velho: "-Um país geralmente corrompido, em que aqueles mesmos que sofrem não se indignam por sofrer."
Este diálogo deve-se a Eça de Queirós. O mesmo Eça que escreveu sobre o Portugal de então: "O povo paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam (...) e padres que rezam contra ele. (...) Paga tudo, paga para tudo. E em recompensa, dão-lhe uma farsa." Estávamos, repito, em 1872.
Estamos obviamente a falar do povo português. Esta "raça abjecta" congenitamente incapaz, de que falava Oliveira Martins. Este povo cretinizado, obtuso, que se arrasta submisso, sem um lamento, sem um queixume, sem um gesto de insubmissão, tão pouco de indignação e muito menos de revolta. Um povo que se deixa conduzir passivamente por mentirosos compulsivos como Sócrates ou Passos Coelho, ou por inutilidades ignorantes como Cavaco Silva, não merece mais que um gesto de comiseração e de desdém. É vê-lo nas televisões, por exemplo. Filas e filas de gente acomodada, cabisbaixa, servil, absurdamente resignada,, a pagar as estradas que a charlatanice dos políticos tinha jurado "que se pagavam a si mesmas"! Sem qualquer tipo de pejo e com indisfarçável escárnio, o Estado obriga-os a longas filas de espera para conseguirem comprar e pagar o aparelho que lhes vai possibilitar a única forma de pagar as portagens que essa corja de aldrabões agora no poder, se lembrou de inventar! E eles passam a noite inteira à espera, se preciso for. E lá vão depois, bovinamente, de chapéu na mão, a mendigar a senha redentora que lhes dará o "privilégio de serem esbulhados electrónica e quotidianamente pela Estado".
Um povo assim não presta, não passa de uma amálgama amorfa de cobardes. Porque, se esta gentinha "os tivesse no sítio", recusar-se-ia massivamente a pagar as portagens. E isso seria o suficiente para que os planos governamentais ruíssem como um castelo de cartas. Mas não. Esta gente come e cala. Leva porrada e agradece. E a escumalha de medíocres que detém o poder, rejubila e escarnece desta populaça amodorrada e crassa que paga o que eles quiserem quando e como eles o definirem. Sem um espirro de protesto, sem um acto de revolta violenta, se preciso for. Pelo contrário. Paga tudo, paga para tudo. Sem rebuço, dóceis, de chapéu na mão, agradecidos e reverentes, como o poder tanto gosta. E demonstram-no publicamente, disso fazendo gala. Como eu vi, envergonhado, a imagem de um homenzinho ostentando um sorriso desdentado e exibindo perante as câmaras da TV o aparelhinho que acabava de pagar, como se tivesse ganho uma medalha olímpica.
Esta multidão anestesiada espelha claramente o país que somos e que, irremediavelmente, continuaremos a ser  -um país estúpido, pequeno e desgraçado. O "sítio" de que falava Eça, a "piolheira" a que se referia o rei D. Carlos. "Governado" pelas palavras "sábias" de Alípio Severo, o Conde de Abranhos, essa extraordinariamente actual criação queirosiana, que reflecte bem o segredo das democracias constitucionais. Dizia o Conde: "Eu, que sou governo, fraco mas hábil, dou aparentemente a soberania ao povo. Mas como a falta de educação o mantém na imbecilidade e o adormecimento da consciência o amolece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito..." Nem mais. Eis aqui o segredo da governação. A ilustração perfeita com que o rei D. Carlos nos definia há mais de um século: "Um país de bananas, governado por sacanas". Ontem como hoje. O verdadeiro esplendor de Portugal."

Sinais dos Tempos, Luís Manuel Cunha, Jornal de Barcelos, 27/10/2011, última página

2 comentários:

Anónimo disse...

DE: Cantoneiro da Borda da Estrada

Convenhamos que é um excelente artigo. Mas a lamentar a habitual lamechice...: porque não haveremos de ter outro povo? Ou porque não emigram mais?

Deviam enfrentar a questão mais difícil: porque é que as nossas elites logo, logo traem quem os "parturiu"? Porque são tão lestos e sábios a amachucar-nos, quando deviam ocupar-se com paixão e devoção a servir-nos? Afinal não lhe faltamos com nada...- estes filhos do povo.

Por outro lado, o tal povo queixa-se também deles: FP, elegemo-los em muitas eleições, custeamos seus estudos, suas bolsas para as universidades, até do estrangeiro, seus estágios, o cofre para onde descontamos enchem-nos de mimos especiais, fazemos reverência às suas ciências, trazêmo-los nas palmas das mãos, depositamos neles esperanças....

E só têm feito é .....

Virgílio Lopes disse...

BOM TEXTO,nú e crú.

Preciso e objectivo a enunciar os EFEITOS.

Pena é que seja omisso e nada aprofunde em relação às CAUSAS, bem como em relação às SOLUÇÕES.

Deixo alguns tópicos para reflexão:

- a passagem do cristianismo ao catolicismo,no sul da Europa. Tema que mereceu estudo aprofundado de Antero de Quental.

- os descobrimentos e o espírito de viver à custa de tudo, mas pouco do trabalho indutor de desonvolvimento.

- viver à sombra de um período histórico alto, mas longínquo.

- a fraca qualidade da "classe dirigente" há centenas de anos.

- os 48 anos de obscurantismo e atraso salazarista.

- a crónica falta de instrução e cultura resultantes de tudo isto.

A SAÍDA, a SOLUÇÃO passará essenciamente por um desígnio magistralmente condensado num quadro apresentado pelo Prof. Ernâni Lopes no programa "Plano Inclinado", numa conversa com o Dr. Medina Carreira e que pode ser visto em:

A VIA ÚTIL PARA O FUTURO
do País e de Tomar


http://infamias-karocha.blogspot.com/2010/06/aos-drs-ernani-lopes-e-medina-carreira.html


Com todo o respeito,

Virgílio Lopes