sexta-feira, 25 de novembro de 2011

"Isto está mesmo a mudar"

"Todos protestam. Protestam os trabalhadores, protestam os patrões, protestam os banqueiros, protestam os comerciantes, protestam os juízes, protestam os médicos, protestam os diplomatas, protestam os militares, protestam os polícias e os guardas prisionais.
Na primeira fase do governo Sócrates também assistimos a muitos protestos, chegando algumas manifestações a juntar 200 mil pessoas. O governo foi muito criticado -mas Sócrates disse que preferia perder as eleições a deixar de fazer as reformas de que o país carecia. E com esta obstinação ganhou uma justa fama de reformador. Só foi pena que mais tarde desse o dito por não dito e entrasse numa espiral de endividamento que não podia acabar bem.
Passos Coelho comprometeu-se a cumprir o programa da troika e está a cumpri-lo. Acontece que não há mudança sem dor e por isso toda a gente se queixa. As centrais sindicais organizaram uma greve geral e Carvalho da Silva chegou a dizer que as medidas da troika são uma "malvadez".
Os patrões também protestam e o presidente da CIP, António Saraiva, ataca o ministro da economia, Álvaro Santos Pereira, e diz que o governo "esgotou o capital de confiança", enquanto Belmiro de Azevedo confessa que o governo o "desiludiu" e que os políticos não têm coragem para fazer o que é preciso.
Os banqueiros protestam porque os obrigaram a uma recapitalização que não queriam, e Fernando Ulrich chamou aos representantes da troika "funcionários de 5ª ou 7ª linha". Os juízes protestam porque acham que não deviam perder regalias, os médicos porque entendem que o ministro da saúde tem uma perspectiva economicista, os diplomatas porque há embaixadas que vão fechar, os artistas porque não há dinheiro para a cultura, os militares porque não querem ser tratados como "escuteiros", os polícias e os guardas prisionais por causa das horas extraordinárias, etc.
As pessoas sentem que estão a perder regalias e protestam. Mas isso é um bom sinal: é sinal de que as coisas estão mesmo a mudar. A questão crucial é saber se as receitas que estão a ser aplicadas vão no sentido certo. 
As críticas dividem-se em dois grandes grupos: enquanto as centrais sindicais, os partidos de esquerda e as corporações contestam as metas impostas pela troika e as medidas de austeridade, os patrões preocupam-se com a falta de incentivos para o relançamento da economia. Assim, para uns o mau da fita é o ministro das finanças (o desconcertante Vítor Gaspar), para outros é o ministro da economia (o despassarado "Álvaro")
Sobre as medidas de austeridade decorrentes das metas impostas pela troika, não há nada a fazer. Se não as cumprirmos não virá mais dinheiro. Claro que poderíamos fazer como Salazar, que em 1928 recusou um empréstimo da Sociedade das Nações por considerar as condições vexatórias para Portugal. Só que a seguir impôs uma rigorosa ditadura financeira, com duríssimas medidas de contenção da despesa, dispondo ainda de instrumentos como o controlo das importações, a possibilidade de cunhar moeda e de desvalorizar o escudo.
Além disso, as greves e as manifestações eram proibidas, os partidos políticos também, havia censura à imprensa e o país dispunha, não o esqueçamos, de um vasto império colonial. Mas hoje não há nada disso.
Existe uma democracia, com liberdade de imprensa, com greves, com manifestações, com fronteiras abertas -e sem império. É muito mais difícil. Deste modo, gostando-se mais ou menos da austeridade e das imposições da troika, não se vê maneira de fugir a elas. Quanto ao relançamento da economia, que suscita queixas de Belmiro de Azevedo e António Saraiva, é preciso dizer que os empresários sempre se queixaram do governo. Só que o crescimento da economia é essencialmente uma tarefa da sociedade civil. Depende dos investidores, dos empresários, dos agentes financeiros.
O governo pode facilitar, criar incentivos, baixar os impostos quando tem folga para isso. Mas não se pode substituir ao capital privado. E aqui entra também em jogo o capital estrangeiro. Se os estrangeiros não investirem fortemente em Portugal, não sairemos da cepa torta, pois não dispomos  de capital suficiente para relançar o que quer que seja. Ora para isso é preciso recuperar a imagem do país, já que Portugal está com uma péssima imagem lá fora. E aí voltamos ao princípio. Temos de ser "bons alunos", pois a nossa imagem externa passa em grande parte pela avaliação que a troika for fazendo do nosso desempenho.
Não sei se os funcionários da troika que cá vêm são de 5ª ou de 7ª linha, como disse Ulrich. Mas sei que não podemos fugir à sua avaliação, e que ela é decisiva. Ou melhor: poderíamos pôr esses senhores na rua e não os deixarmos cá voltar a pôr os pés, se recuássemos no tempo, aos tempos de Salazar, aos tempos do império, aos tempos das fronteiras fechadas, da cunhagem de moeda, do escudo ajustável, da proibição de greves, da censura à imprensa. Só que esse tempo acabou."


José António Saraiva, Política a sério, Sol, 25/11/2011, página 3

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