quarta-feira, 2 de março de 2011

"PAVLOV E OS REFLEXOS DA ESQUERDA"

"1 - A esquerda nacional, não toda ela, diga-se em abono da verdade, continua e continuará presa a reflexos ideológicos característicos do passado. O principal deles é a aversão ao liberalismo. Mal se fala em liberalização, iniciativa privada, mercado, défice do sector público, excessivo peso do Estado na economia, etc.,  salta-lhe a tampa e chovem as acusações de "capitalismo selvagem", "ofensiva reaccionária" e os desgraçados dos tímidos defensores daquelas ideias são logo insultados até à terceira geração, vilipendiados e considerados obviamente ao serviço de habituais interesses cavilosos, claro que "em sintonia" com a actual "estratégia" de Cavaco Silva e de Passos Coelho, claro que ávidos por seguirem ao leme do "grande capital" privado.
Pavlov, herói da pseudobiologia "soviética" e que gerou a brutalidade do stakhanovismo, teria curiosidade por este fenómeno. Qualquer adepto de uma biologia primitiva apostada em reduzir o comportamento humano a uma série de efeitos reflexos perante estímulos exteriores, teria naquele fenómeno português, quiçá a confirmação dos seus pontos de vista. O curioso é que tais pontos de vista aparecem mesmo em pessoas cuja cultura e inteligência fariam esperar outra coisa.
Não passa pela cabeça a estes profetas da desgraça que o liberalismo actual nada tem a ver com o do século XVIII. Que apoia a intervenção do Estado na correcção das disfunções do mercado, que desconfia da bondade espontânea dos mecanismos de mercado, que aceita e promove o serviço público, na certeza de que o âmbito que lhe compete é hoje muito mais amplo que outrora, que é adepto das regras da economia mista, que deseja a regulação, que aposta na redistribuição fiscal, etc... Nada disto importa. O obscurantismo daquela esquerda tem as suas razões; as que a razão desconhece.
2 - Um dos aspectos em que aquele obscurantismo mais se evidencia é na reacção à eventual intervenção do FMI no nosso país.Ele aí vem apenas para garantir o pagamento da dívida pública aos nossos credores, para empobrecer os indígenas, para diminuir direitos sociais, para facilitar a sobreexploração, etc. Não passa pela cabeça de alguns que com FMI ou sem ele, com os impostos a diminuir e com a economia em recessão e se não forem postas em prática medidas restritivas, a partir deAbril ou Maio, talvez até antes, não haverá dinheiro para pagar salários da função pública, mesmo que diminuídos, nem para garantir as pensões dos idosos, nem o rendimento social de inserção, nem os serviços básicos da saúde pública. A intervenção do FMI serve para facilitar o crédito, mas ao mesmo tempo evita-o na medida do possível.
Como não podemos emitir a moeda que nos apetecer, nem diminuir a taxa de câmbio da nossa moeda, só temos a solução de vender dívida pública, ou seja, de pedir dinheiro emprestado aos nossos credores, sejam eles privados ou públicos, de direita, de esquerda ou do centro, e estes só nos emprestam se tiverem a certeza do reembolso do capital, acrescido de juros obviamente generosos. Quem usa dinheiro alheio, fica sujeito a certas regras objectivas.
Mas fiquem descansados os próceres do obscurantismo. Se amanhã os nossos credores fossem por mera hipótese o Estado cubano ou norte-coreano, concerteza que os juros proletários e solidários a que estariam dispostos a emprestar-nos dinheiro seriam, já se vê, muito mais baixos e pintados de vermelho.
Por muito que custe a aceitar a alguns, o português comum é cada vez mais capaz de fazer um "uso público da razão", como diria Kant. Não adianta insistir em reduzi-lo à situação de menoridade intelectual."

Luís Cabral de Moncada, jornal i, 02/03/11, página 3

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