sexta-feira, 7 de outubro de 2011

ASSENTA-NOS QUE NEM UMA LUVA...

Tal e qual como as obras dos grandes costureiros, esta sábia análise de Manuel Maria Carrilho assenta-nos que nem uma luva, a nós tomarenses. Sobretudo àqueles que obstinadamente continuam a olhar para o passado, procurando vislumbrar quando é que voltará a ser presente. Uma parvoice, claro! Mas a realidade é o que é e os cidadãos agem como agem. Ou antes, não agem. Esperam que outros o façam por eles. Têm muito que aguardar.

O ponto cego

"Acabaram os tempos de ilusões", disse ontem Cavaco Silva. Mas o nosso principal problema, e a razão do severo impasse em que nos encontramos, não é de agora. Há muito que devíamos ter mudado de lentes para corrigir o nosso olhar e ver as novas realidades do país e do mundo. E na verdade não o fizemos.
Condenámo-nos assim à impotência política e, a prazo, corremos seriamente um risco de crescente irrelevância. É este o problema de Portugal, como é este o problema da União Europeia [e de Tomar, infelizmente!]. Há diferenças, e grandes, de factores, de timings e de escala. Mas a natureza do problema é a mesma.
E esse problema central é o do esgotamento do modelo de crescimento que se baseava fundamentalmente num crédito torrencial que, subitamente, diminuiu ou colapsou. É este o ponto cego das nossas dificuldades ocidentais, que na verdade quase ninguém quer ver e pensar, dada a multiplicidade e gravidade das suas implicações.
Passámos a última década distraídos, muito distraídos. Primeiro com a declamatória "estratégia de Lisboa", aprovada em 2000, que deveria ter feito da União Europeia "a economia do conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo, antes de 2010, capaz de um crescimento económico duradouro, acompanhado por uma melhoria quantitativa e qualitativa do emprego e uma maior coesão social"... Depois, arrastando os problemas institucionais da UE, de cimeira em cimeira, de tratado em tratado, só descobrindo a quase inutilidade de tudo isto quando a ratificação do último, o Tratado de Lisboa, coincidiu com o rufar dos tambores da crise, a dizer que afinal os problemas que se impunha tratar eram outros. Por fim, com a imprudente arrogância de fim de época, que nos tornou incapazes de perceber o novo mundo que se abria com a entrada em cena dos países emergentes, abalando as ingénuas expectativas de que, com a globalização, a supremacia ocidental se consolidaria...
O ponto cego do nosso tempo está aqui: por um lado, no esgotamento do paradigma do ilimitado, seja da energia, do consumo ou do crédito. E, por outro, na brutal competição que, simultaneamente, a globalização impôs em todos os domínios (da produção à fiscalidade, do trabalho ao ambiente, etc.), acentuando de um modo alucinante o ritmo e a intensidade da crise deste modelo. O choque de 2008 não bastou para compreender isto. O recurso oportunista a um keynesianismo de pacotilha alimentou a ilusão de um rápido regresso à normalidade, a uma normalidade que mais não era do que esse sonho do ilimitado e a um crescimento que, claro, ele não deixaria de provocar.
Acontece que os planos de relançamento acabaram sobretudo por aumentar a dívida, com o impacto que se sabe nas dívidas soberanas, sem qualquer retoma séria de crescimento ou de emprego. O crescimento mundial arrefece, diz o "Relatório de Outono" do FMI, a zona euro crescerá este ano 1,6% e no próximo 1,1%. Portugal afunda-se numa recessão para que não se vê saída. E a Organização Mundial do Trabalho alerta para o facto de 55% do aumento do desemprego mundial entre 2007 e 2010 ter ocorrido no mundo desenvolvido, nomeadamente na UE, que tem apenas 15% da população activa mundial.
É, pois, preciso mudar de lentes e reconhecer que é no modelo de crescimento dominante nas últimas décadas, alavancado sobretudo pelo crédito, que está o grande problema. Como há dias escrevia E. le Boucher, no Slater, "o endividamento não é a raíz do mal; é o analgésico que permitiu que não se olhasse o mal de frente. O mal é a necessidade de uma enorme mudança, imposta pela globalização, em relação a "como produzir" e a "como proteger".
Estamos numa viragem de civilização, muito mais do que num momento de oscilação de ideologias. Por isso, de resto, elas parecem tão inúteis e perdidas, propondo mais ou menos o mesmo por todo o lado, com um efeito cada vez mais corrosivo na confiança dos cidadãos nas instituições democráticas."

Manuel Maria Carrilho, Diário de Notícias, 06/10/2011, página 55.
O texto a azul, o negrito no texto original e a ampliação são de Tomar a dianteira.

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