domingo, 30 de outubro de 2011

"A minha solução para a crise"

"Ao retirar-me os subsídios de férias e de Natal -uma forma idiota, reconheço, de pagar os trabalhadores- o governo acaba de anunciar que vai cortar 25% do dinheiro que ganho anualmente. Isto não é justo. Trabalho desde os 19 anos e nunca patrão algum teve queixa de mim: fui intérprete no ministério da saúde, tirei o curso de filosofia como estudante-trabalhadora, fui bolseira da Fundação Gulbenkian , assistente na Universidade Nova e, em 1977, doutorei-me na Universidade de Oxford, numa área, a sociologia, apenas escolhida porque o prof. Salazar a proibia, o que demonstra a pouca iluminação que habitava a sua alma e os extremos a que o temperamento pode conduzir.
Com quem todavia gostaria de falar não era com o Velho mas com o ex-primeiro-ministro, com o presidente da República, com o primeiro-ministro, com o ministro das finanças e com o ministro da educação. Ao primeiro, gostaria de lhe dizer que, após ter empurrado o país para o abismo, o mínimo que dele se esperaria era que não andasse a pavonear-se por restaurantes chiques de Paris, ao segundo de lhe lembrar que o monstro é, em grande medida, obra sua. Aos três últimos, a mensagem pode ser dada em conjunto: despeçam os funcionários que nada fazem.
Durante anos, considerei isto difícil, por imaginar que seriam usados critérios partidários. Mesmo no mundo universitário, onde pensava que se devia manter a chamada nomeação definitiva, por conferir maior liberdade de expressão, mudei de opinião. A contemplação do abismo aumentou, como se vê, a minha capacidade intelectual. O que o país precisa não é de economistas, que entendam de spreads, swaps e hedge funds, mas de alguém com imaginação sociológica. É aqui que entro.
Encontrei uma solução que gostaria de apresentar. Em vez de me cortarem um quarto do vencimento, bastaria despedir nove dos meus colegas que, ao longo dos anos, não escreveram dez linhas aproveitáveis. Já agora, talvez não fosse má ideia pôr na rua os docentes que não preparam aulas, os que faltam aos compromissos académicos, os que promovem os amigos e os que andam a "salvar" o mundo com propaganda que introduzem dentro da sala de aula.
Dir-me-á o ministro das finanças que o país se levantaria em revolta. Nada disso, garanto-lhe, sucederia. Porque há "justa causa". Bastaria pedir a estes "intelectuais" para exibirem uma prova do que, ao longo dos anos, fizeram com os milhares de euros recebidos do Estado. Se falo da Universidade é por ser o habitat que melhor conheço, mas tenho a certeza de que, por essas repartições e empresas públicas, existem casos piores.
Livre desta canga, o Ministério das Finanças poderia distribuir o dinheiro de forma mais justa. Vejamos o meu caso: com a verba dos nove colegas dispensados, eu passaria a receber uma verba idêntica à auferida pelos colegas suiços, num escalão da carreira universitária idêntico ao que ocupo, o que contribuiria para aumentar a minha alegria de viver."


Maria Filomena Mónica, Expresso, 29/10/2011, página 12

2 comentários:

Anónimo disse...

Este artigo é um Mimo! Pudera!!!! É de uma jornalista, "filósofa", socióloga, historiadora, professora universitária, etc. - e ainda estudou na univ. de Oxford.

Caganda admiração! Assim também eu...

Os pais dela eram de Ferreira do Zêzere. Atendendo à crise de liderança em Tomar, convidem a Professora para se candidatar à Câmara de Tomar!

O Dr. Rebelo bem a vem promovendo.

Virgílio Lopes disse...

MFM diz algumas verdades,infelizmente proliferadas por toda a sociedade - no público e no privado - particularmente válidas para quadros das várias castas dominantes e para "boys and girls" de valor e competência inversamente proporcional à vaidade,prosápia,arrogância e proveitos financeiros.

Ou seja,aborda a questão de uma forma ultra-superficial e absolutamente egoísta, focada no SEU umbigo,na SUA conta bancária e nos SEUS luxos.

Confunde casta com sociedade.

Esquece os milhões que já não vivem. Só sobrevivem.

Esta postura de casta,este egoísmo atroz,ficam bem espelhados neste mimo:

"Vejamos o meu caso: com a verba dos nove colegas dispensados, eu passaria a receber uma verba idêntica à auferida pelos colegas suiços, num escalão da carreira universitária idêntico ao que ocupo, o que contribuiria para aumentar a minha alegria de viver."

Os outros,os milhões que trabalharam uma vida inteira,muitas vezes desde o fim da escola primária,que são obrigados a viver com rendimentos (vencimentos e pensões) abaixo do salário mínimo,que se lixem,com F grande.

Importante,alvo das maiores injustiças,condenada a viver infeliz com rendimentos de seis dígitos,está a desgraçadinha MFM...

Como me dizia um velho amigo:

"E eu,de cuja minha mãe sou filho,a aturá-los..."


Virgílio Lopes