Desde há meses que perante o nítido agravar da crise, a todos os níveis, procuro uma frase, um parágrafo, uma crónica, um livro, capaz de explicar de forma cabal o maior problema social, económico e financeiro deste século. Li centenas e centenas de páginas, fui aprendendo, mas quanto à tal explicação, nem sinais. E de repente, encontrei! É assim para o palavroso, pelo que resolvi assinalar a parte que reputo fundamental com negrito sublinhado. Trata-se, no meu entender, de uma magnífica crónica da jornalista veterana Sylvie Kaufmann, com mais de 30 anos de tarimba, que no jornalismo como no resto ajuda sempre muito. Que aborda a situação mundial, mas cujas conclusões, mutatis mutandis, são válidas igualmente ao nível europeu, ibérico, nacional, regional e local, como adiante se verá.
"Não é costume criticar a concorrência. É mesmo muito pouco elegante. Mas o tema de capa do Figaro Magazine deste fim de semana é tão revelador do problema francês, e o seu timing tão infeliz, que pareceu de utilidade pública dedicar-lhe algumas linhas. Tanto mais que o tema não deixará indiferentes muitos leitores do Le Monde, que após leitura desta crónica irão decerto comprar o referido periódico, reparando assim a ofensa que lhe faço. A pergunta incendiária à qual o Figaro Magazine procura responder é a seguinte: "Como pagar menos impostos?"
Que importa que estejamos na véspera da cimeira europeia de todos os perigos, à cabeceira de uma zona euro à beira da explosão, estrangulada pela dívida pública!
Que importa que os cofres do Estado estejam vazios, que as agências de notação nos mantenham sob forte pressão, que os deputados votem um imposto excepcional sobre os mais altos rendimentos!
Que importa que o presidente da república tenha declarado, no dia 18, que o destino da Europa "vai ser decidido nos próximos dez dias", ou seja, até ao Dia de Todos os Santos!
Não. O que conta é o retorno aos fundamentais: "Como pagar menos impostos?" Espertos, os gregos encontraram uma solução radical: não pagar impostos nenhuns. É exactamente por causa disso e por causa deles que estamos como estamos, desde há dois anos.
Há neste momento uma forma de recusa, nos países ditos "ricos", que consiste em não querer encarar a realidade de frente. Em recusar-se a aceitar que o recurso sistemático ao crédito e ao endividamento constitui uma lógica económica que só pode durar um certo tempo, e que esse tempo já passou. Que transitamos agora para a época do reembolso, inevitavelmente doloroso, colectivo e europeu. E que também o Mundo entrou já noutro ciclo, no qual as relações de força já não são exactamente as mesmas. Ou seja, houve uma mudança de paradigma à escala europeia e mundial, que os nossos cérebros ainda não aceitam.
Outro exemplo. A 15 de Outubro reuniram em Paris os ministros das finanças do G20, igualmente por causa da zona euro, abalada pela dívida grega. Um dos principais pontos litigiosos -que persiste uma semana depois- é a arquitectura e a envergadura do fundo europeu de salvação, oficialmente Fundo Europeu de Estabilidade Financeira - FEEF.
Recorde-se que o G20 foi institucionalizado quando houve consciência, por altura dos sobressaltos provocados pela falência do Lehman Brothers, do peso cada vez maior dos países ditos "emergentes" na economia mundial, bem como pela necessidade de os associar ao debate sobre o futuro do mundo, para além do G8, que até então determinava a chuva e o bom tempo.
Constatando em Paris o embaraço dos europeus, os países emergentes, liderados pelo ministro das finanças do Brasil, Guido Mantega, um dos obreiros, ao lado de Lula da Silva, do sucesso económico brasileiro, ofereceram a sua ajuda, por intermédio do FMI, para recapitalizar a zona euro. Estes países encontram-se numa dinâmica inversa da nossa, em termos de crescimento económico e de endividamento externo. Falando sem peias -Têm dinheiro e pretendem investi-lo.
Porquê? Porque a Europa é um mercado de 500 milhões de consumidores, essencial para o prosseguimento do seu desenvolvimento, mas também porque, no sistema mundializado, começam a preocupar-se seriamente com o impacto da crise da zona euro nas suas próprias economias.
A Índia acaba de admitir que não atingirá este ano o objectivo de uma taxa de crescimento de 8% do PIB, enquanto que a China regista já um afrouxamento económico. Jean-Pierre Jouyet, presidente da autoridade francesa dos mercados financeiros, que apresentou a sua análise da crise actual no passado dia 20, acrescenta ainda outra razão para a atitude dos BRICS: Precisam da Europa porque não querem encontrar-se no diálogo cara a cara com os Estados Unidos. Afinal, o euro é a segunda moeda mundial de reserva, após o dólar americano, e um poderoso instrumento de diversificação monetária.
Contudo, a oferta dos BRICS foi recusada. Não pela União Europeia, mas pelos países anglo-saxónicos do G20, Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e Austrália, aos quais se juntou depois o Japão. Para estes países, a Europa deve resolver os seus problemas antes do reforço dos capitais do FMI. O Financial Times classificou esta reacção como a da "velha aristocracia falida", que finge não ver o paralelismo entre a redução do nível dos seus cofres e a da sua influência.
Podemos imaginar sem dificuldade o que se esconde por detrás da rejeição da oferta dos emergentes. O mesmo Jean-Pierre Jouyet evoca uma "guerra financeira" entre os Estados Unidos e a Europa, uma tese com muitos aderentes em Bruxelas. Americanos e britânicos têm neste momento os seus próprios constrangimentos de política interna. Fragilizado por uma elevada taxa de desemprego, a um ano da eleição presidencial, Obama teria muitas dificuldades em levar a questão do FMI perante o Congresso. Por outro lado, a presidente do Brasil, Dilma Roussef, lá foi dizendo que uma nova injecção de capitais no FMI deverá ser acompanhada por uma reforma da sua governança, até agora dominada pelos ocidentais.
A propósito de domínio ocidental, a edição de Outubro de L'Actuariel, o magazine dos notários, com muito menos audiência do que o Figaro Magazine, oferece aos seus leitores uma instrutiva entrevista de Guan Jianzhong, director da agência de notação chinesa Dagong e conselheiro de Estado em Pequim. Que diz ele? Que as três grandes agências de notação ocidentais praticam o método dos "dois pesos e duas medidas" para "proteger os interesses dos Estados Unidos, cuja capacidade de reembolso da dívida pública é no entanto cada vez mais fraca." E acha pouco normal uma situação em que "são os países mais endividados que dominam o sistema de notação, fornecendo-lhe informações que lhes são favoráveis, provocando assim a acentuada degradação da relação credor-devedor."
Como se vê, em termos de mudança de paradigma, o senhor Guan não podia ser mais claro."
Sylvie Kauffman, Le Monde, 23/10/2011, página15
Tradução de António Rebelo/Tomar a dianteira
2 comentários:
Ou estou muito enganado...
ou o que designa de "novo ciclo"(a que chamam globalização e que eu designo de "FINANCEIRIZAÇÃO global")não está a iniciar-se.
Já tem 20/22 anos...já empobreceu todos os povos do mundo...e está...desde 2007...em acentuada auto-destruição.
Os problemas de Portugal,da Grécia,da Irlanda,da Islândia...da Bélgica,da Espanha,da Itália...e em breve da França e da Alemanha...não se confinam à governação intra-fronteiras.
Se assim fosse,seriam muito mais fáceis de resolver.
Tem muito a ver com o tal ciclo...não novo...mas velho por estar à beira da implosão.
A crise do euro é apenas a ponta de um iceberg...que se chama crise global do sistema que "financeirizou" o mundo.
A crise maior está do lado de lá do Atlântico...nos "States"...com o maior défice e maior dívida externa que alguma vez existiu.
Dívida externa que,em grande parte,está nas mãos da China,dos BRIC e do G-20.
Os EUA só estão ainda de pé porque continuam a emitir dólares,sem limite,sem sustentação material no valor do país e da economia.
Se funcionassem as normais regras de mercado,os EUA estariam super-falidos e com uma taxa de inflação de uma dezena de dígitos.
Os dólares em circulação ou depositados nos EUA e e em todo o mundo,sobretudo titularizando a sua colossal dívida externa,não têm qualquer suporte em criação real de riqueza,em valor material,físico.
O dólar é,há muito,uma moeda VIRTUAL,apenas escritural.
E essa é maior ameaça mundial à economia e à sustentabilidade do chamado "modelo social europeu".
Não foi o POVO PORTUGUÊS que viveu acima das suas possibilidades!
Foram alguns portugueses,à custa do endividamento daqueles que se deixaram enganar pela PUBLICIDADE ENGANOSA dos banqueiros e dos grupos económicos,de políticos vigaristas e intrujões que hoje os asfixiam com cortes e impostos.
O eixo franco-alemão,os americanos e outros,estão sempre a facturar:
PRIMEIRO financiaram o endividamento dos portugueses para lhe comprarem automóveis,comboios,máquinas,equipamentos e muitas ilusões. Estavam a pensar e lucrar sem limites,julgando que o crescimento económico lhes asseguraria sempre o LUCRO e o REEMBOLSO DO CAPITAL E JUROS.
Enganaram-se!
A economia não cresceu,o sistema entrou em colapso,ladrões de várias cores apropriaram-se de valores superiores ao Orçamento de Estado para vários anos.
E AGORA,face a este quadro,veem impor a austeridade e o empobrecimento que lhes garantam o pagamento daquilo que o ENGANOSO crédito fácil e barato provocou.
SÓ QUE...
Como a Grécia evidencia...a receita não resultou.
ESMIFRAR estimulando empréstimos para lhes aumentar as exportações e o lucro e voltar a ESMIFRAR com novos empréstimos para pagar empréstimos,a juros leoninos,está a levar à solução do "CAVALO DO ESPANHOL"...
E,a propósito:
Vejam "LES PORTUGAIS?"
http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/
RECTIFICAÇÃO :
"Se funcionassem as normais regras de mercado,os EUA estariam super-falidos e com uma taxa de inflação de DEZENAS de dígitos."
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