segunda-feira, 19 de outubro de 2009

TEMOS DE SALVAR O SOLDADO DÓLAR

Nota prévia: O texto seguinte destina-se apenas a uma pequena minoria -a daqueles que sabem ler, gostam de ler, apreciam um documento bem escrito, e se interessam pelos grandes problemas deste mundo, do qual também fazemos parte. Resolvemos publicá-lo por nos parecer um excelente exemplo de como os grandes especialistas de qualquer ciência se esforçam por usar um estilo simples, cativante e bem disposto. Exactamente o inverso do que amiúde acontece nesta nesga à beira mar instalada. Onde qualquer palonço recorre às "palavras de sete e quinhentos", (como dizia o povo no século passado, no tempo do escudo e da vida barata), e à frasealogia com muitos elementos de ligação. Cuidam que assim fica mais sério, mais responsável, mais bonito, mais científico. É o velho dilema: devem os mestres explicar matérias difíceis com palavras simples, ou coisas simples com frases e termos complexos, para simular que são muito complicadas ? Poderá parecer que não, mas também aqui está em causa o nosso futuro como comunidade autónoma e livre.
"A cena passou-se em Moscovo, no princípio dos anos 90. O presidente da Reserva Federal Americana, Alan Greenspan, bebia um copo no bar de um grande hotel, acompanhado pelos seus amigos, governadores dos bancos centrais. A dada altura, deixou uma generosa gorgeta em dólares e ficou desagradavelmente surpreendido quando o empregado do bar lhe disse: -"Desculpe, mas se por acaso tivesse marcos alemães era preferível".
Vinte anos depois, a desconfiança perante a nota verde atinge níveis nunca vistos. E não somente nos grandes hotéis moscovitas. Reuniões secretas -por acaso não suficientemente secretas, uma vez que apareceram nas primeiras páginas dos jornais- terão tido lugar, para substituir a nota verde como moeda de facturação do petróleo. Desde há meses, igualmente, autoridades chinesas têm mencionado a necessidade de encontrar uma nova moeda de referência internacional. A melhor defesa ainda continua a ser um bom ataque. Este bombardeamento como mandam as regras ainda é para Pequim a melhor maneira de provocar o esquecimento sobre a subvalorização deliberada e monumental (cerca de 40%) do yuan, a moeda chinesa.
Quanto aos economistas, prevêem para breve o descalabro da nota verde, como consequência da decadência de uma América mortalmente infectada pelos "subprimes". Acusada pelos seus excessos passados, punida pelos seus vícios. E sobretudo incapaz de se adaptar ao novo modelo de crescimento, o qual supõe que o americano médio deixe de andar em 4 x 4 e passe a usar a bicicleta; que poupe e deixe de consumir.
Muitos são os que se deliciam por antecipação com a morte anunciada da nota verde, uma espécie de sonho monetário do anti-americanismo -"esse socialismo dos imbecis", segundo a fórmula de Jacques Julliard. Imbecis e suicidas.
Temos de salvar o soldado dólar, antes de mais porque a sua queda irremediável teria como primeira consequência a devastação das economias europeias: o euro subiria até ao céu, as exportações cairiam, o crescimento diminuiria, o desemprego explodiria. Arruinaria também os países emergentes, que assistiriam à desvalorização das suas reservas cambiais. Só Pequim detém cerca de 2300 biliões de dólares e ninguém ousa sequer imaginar qual seria a reacção do povo chinês, caso este magote, conseguido após dezenas de anos de árduos esforços, viesse a evaporar-se.
Depois, porque não existe ainda uma alternativa séria ao dólar. Não é moeda de reserva, não é divisa dominante, quem quer. Relance sobre os principais pretendentes ao trono. O yen japonais ? Deixou passar a sua oportunidade nos anos 80, quando o Japão crescia a olhos vistos e comprava a América às fatias. Mas o rebentamento da bolha imobiliária e bolsista travou brutalmente a sua internacionalização.
O euro ? Os economistas Chinn e Frankel prevêem que ultrapassará, a partir de 2015, o dólar nas reservas mundiais (actualmente representa apenas um quarto, contra dois terços para o dólar). As vantagens do euro ? A dimensão da sua economia e da sua população, a estabilidade política, a credibilidade do Banco Central Europeu. Os seus inconvenientes ? Um crescimento estrutural flácido, mas também as reticências do BCE para transformar o euro numa grande moeda de reserva, com medo de vir a perder o controle da massa monetária. Enfim, e sobretudo, a incapacidade da Europa para existir como uma grande potência diplomática, militar e política. "As grandes potências têm grandes moedas", escreveu algures o Prémio Nobel de economia Robert Mundell. Mas o o inverso também é verdadeiro: para vir a ser uma grande moeda tem de se ter o amparo de uma grande potência. O que, com toda a evidência, a Europa não é.
O yuan ? Tem a favor o formidável dinamismo da economia chinesa e o potencial de crescimento de uma país de 1,35 biliões de habitantes. Mas tem contra ele tudo o resto: a não convertibilidade, os mercados financeiros subdesenvolvidos, o controle dos capitais a todos os níveis, e o regime político. Afinal, ainda vale mais suportar o domínio monetário de uma democracia enfraquecida, que o de uma ditadura de boa saúde. Há gostos para tudo.
Uma nova moeda ancorada nos famosos DTE -direitos de tiragem especiais- do FMI ? A Rússia e a China apoiam a ideia -por isso convém desconfiar- que transformaria Dominique Strauss-Kahn (actual director do FMI) no grande banqueiro central do planeta. Os adversários deste sistema fazem notar a sua complexidade, as dificuldades de "pilotagem", e o facto de não poder haver uma moeda mundial sem governança mundial.
Regresso ao padrão-ouro ? Seria a mais razoável das soluções, bem como a mais capaz de vir a assegurar a estabilidade do sistema monetário internacional. Mas ninguém o quer, sobretudo os governos, porque prejudicaria seriamente a gestão política da moeda.
Em que ficamos então ? O dólar está talvez moribundo, mas viva o dólar ! Como escreveu o economista americano Benjamin Cohen, a propósito do futuro das moedas de reserva, "o dólar é a pior das escolhas, à excepção de todas as outras". E os Estados Unidos correm o risco de continuar a ter esse "privilégio exorbitante", que tanto irritava De Gaulle, de continuar a dispor da única moeda mundial. Privilégio exorbitante, sem sombra de dúvida, mas ligado a vantagens exorbitantes, coisa que De Gaulle não referiu, deslumbrado pela grandeza da França. Onze dos treze Nobel deste ano são americanos, um novo record. Os empregados dos bares dos grandes hotéis moscovitas fariam mal se continuassem a recusar as gorgetas em dólares."
Pierre-Antoine Delhommais - Le Monde
P.A. Delhommais é um dos grandes economistas franceses actuais. Faz parte da Escola de Economia de Paris e é conselheiro económico do governo francês.
Notas, tradução e adaptação de António Rebelo

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